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08/06/2003 - 07h06

Radicais de cátedra

RAFAEL CARIELLO
da Folha de S.Paulo

A luta acabou, companheiro, e o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, embora todo o esforço retórico em contrário, não trará nenhuma mudança substantiva. É isso, ao menos para os professores "inativos" --como foram ironicamente apresentados-- da USP Paulo Arantes (filosofia) e Francisco de Oliveira (sociologia).

Os dois, entre os mais importantes intelectuais simpatizantes do PT, decretaram publicamente o fim de suas esperanças na última quinta-feira, durante debate na USP sobre "O Pensamento Crítico no Brasil de Lula".

Também discursaram, para as cerca de 200 pessoas presentes ao evento --que marcou o lançamento da revista "Margem Esquerda", da Boitempo Editorial--, o sociólogo Emir Sader e o advogado e ex-deputado federal pelo partido Plínio de Arruda Sampaio. Os dois manifestaram sua insatisfação com a condução do governo, mas insistiram na idéia de que ainda é preciso disputar o rumo a ser tomado.

Eram todos, de qualquer forma, "dissidentes". Nenhum dos quatro participou da reunião entre o presidente e 23 intelectuais petistas realizada em São Paulo dois dias antes. Oliveira e Arantes faziam parte do grupo quando ele se reunia com Lula durante a campanha de 2002. Abandonaram os encontros após a posse.

Primeiro a falar, Arantes sentenciou: "Uma vez adotada a atual política macroeconômica, que não é especificamente brasileira, mas mundial, a saída é uma impossibilidade lógica". E disse que pretendia tentar explicar "esse milagre ideológico que é a conversão do maior partido de esquerda do Ocidente".

Para uma platéia silenciosa de estudantes e professores, apresentou o argumento de seu artigo "Beijando a Cruz", recém-publicado na revista "Reportagem", uma publicação mensal de esquerda com circulação restrita.

Pascal

O modelo escolhido, ele diz, é de venda de confiança, permanente, sem possibilidade de "transição". "Essa credibilidade deve ser de tal maneira inabalável, que eu não posso em nenhum momento, sob pena de morte súbita, fazer o que se disse que se vai fazer --que é ter um plano B, C ou D de saída dessa confiança vendida--, por uma questão de bom senso, lógica. Não posso dizer para os mercados, para os investidores, para banco internacional, para a administração americana: "agora que vocês viram como eu sou eficiente, de absoluta confiança, que não vou fazer nenhuma irresponsabilidade na condução da política macroeconômica, agora que vocês podem acreditar definitivamente em mim, eu vou mudar."

E como entender, ele perguntou, que o governo do presidente Lula se esforce a cada 24 horas para manter a confiança dos mercados e ao mesmo tempo prometa sempre o advento da mudança (ficando, a cada dia, mais fraco politicamente)? Como é possível que o PT diga hoje: "Essa receita não deu certo nos últimos oito anos, mas vai dar certo agora"?

Na presença do católico Plínio de Arruda Sampaio, Arantes impôs ao debate e à análise do governo Lula um cruzamento de metáforas católicas e marxistas, fontes caras à formação do PT e ao pensamento petista, para tentar responder à questão.

Segundo ele, o núcleo duro petista do governo seguiu, inconscientemente, "o modelo do [filósofo francês Blaise] Pascal [1623-1662]". "Poderíamos imaginar", ele disse, "que se trata de uma miragem, que eles não sabem o que estão fazendo, mas mesmo assim fazem, e estaria explicado essa espécie de suicídio político."

Mas não. O governo, ele afirmou, se converteu e beijou a cruz da ortodoxia nos hábitos, na prática, e liberou o "espírito" para continuar divagando na descrença retórica ao mercado.

"Depois de 20 anos de ateísmo, como você pode se converter em 48 horas? Os mercados, com razão, farejaram a mutreta", afirmou. "Você racionalmente sabe que tem alguma vantagem naquilo, mas não tem fé. Como é que faz para ter fé?"

A conversão seguiu as recomendações de Pascal, de forjar a fé pelo hábito. "Faça o seguinte, faça como os outros, que tinham dificuldade, e hoje vivem bem na fé. Mande rezar missa, reze o terço, criando esse hábito, automatizando esses gestos, com o tempo a fé virá. Daí a expressão "beijar a cruz". Entregue o que você está prometendo, mande rezar várias missas no Banco Central, aumente os juros."

Esse "fazer", ele diz, tem a "propriedade maravilhosa" de "liberar o espírito" para "divagar e discorrer não acreditando no mercado", prometendo mudança.

E aqui vem o argumento fundamental: "Mas isso [a promessa de mudança] não faz a menor diferença. Deus, os mercados, sabem que objetivamente, como diriam os stalinistas, você está rezando".

As comparações religiosas, que aliás impregnam o governo, com suas ortodoxias e reformas, derivaram para a composição da mesa. De um lado, os dois "ateus" (Oliveira e Arantes); de outro, os inclinados à fé na mudança, Sader e Sampaio.

Desmonte da política

O "ateu" Francisco de Oliveira defendeu que a eleição de Lula só foi possível pelo "desmonte da política" levado a cabo pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Ao desestruturar e enfraquecer, com suas opções de política econômica, simultaneamente a burguesia e os trabalhadores, FHC logrou desmontar "as relações de representação [política] e de força dos dois lados".

Nessa ausência de hegemonia, Lula, antes rejeitado, foi eleito e constituiu-se num enigma --pois poderia pender para o lado da continuidade ou da ruptura.

O enigma, disse na USP o sociólogo, já se desfez. "A luta foi ganha pela continuidade. A vertente da ruptura perdeu."
 

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