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14/10/2003 - 16h26

Leia a íntegra do discurso de despedida de Gabeira

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da Folha Online

"Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, estou na tribuna para comunicar que deixei o Partido dos Trabalhadores. Portanto, saio da base do Governo para atuação independente.

Hesitei muito em apresentar aos senhores um discurso escrito. Nos últimos dias as idéias passavam muito rapidamente pela cabeça e os textos eram também superados velozmente.

Saio do PT por algumas das razões divulgadas pela imprensa e não vou repeti-las em sua totalidade. Uma saída não deve ser vista como um rosário de lamentações. É preciso celebrar também algumas vitórias em comum. A mais importante delas - apesar da distância física, meu coração estava com o Governo - foi quando o Brasil decidiu condenar a guerra no Iraque.

Muitos temiam que os Estados Unidos iriam se sentir confrontados, mas era uma aventura militar condenada ao fracasso, aliás, cotidianamente demonstrado nos noticiários de televisão. Hoje podemos dizer que grande parte do povo norte-americano, sobretudo o informado, consideraria a rejeição à guerra como gesto de verdadeira amizade do Brasil com os Estados Unidos.

Para isso, Sr. Presidente, servem as decisões com visão de longo alcance.

No entanto, foi grande nosso desencontro numa questão de política externa: Cuba. Era preciso denunciar as violações de direitos humanos; pedir pelo poeta Raúl Rivero; por jornalistas e intelectuais presos; condenar a execução a toque de caixa dos seqüestradores de um barco. Era preciso também falar com a oposição cubana. Nada disso foi feito. E eram, na minha opinião, interesses nacionais que estavam em jogo. Nada tenho contra afetos e gratidões pessoais. São admiráveis faculdades humanas, mas não podem prevalecer sobre nossos interesses de Estado.

Aceitar a expulsão dos repórteres sem fronteiras do Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, foi também uma dor no coração. Se pudéssemos discutir o assunto democraticamente, veriam que não é uma posição brasileira, mas uma ação entre amigos e compadres.

A relação do Brasil com Cuba não pode ser reduzida a uma relação de amigos e compadres, ela é muito mais complexa e muito mais importante para a nossa estratégia.

Nossa política externa vive um grande sobressalto pela falta de pagamento aos embaixadores e funcionários. Não há política externa que resista a esse tipo de pressão cotidiana. Nesse momento da globalização precisamos de bons funcionários no exterior, ampliar e melhorar as condições de nossa diplomacia.

Embaixadores e funcionários brasileiros assediados por credores não é o tipo de serviço diplomático que nós queremos.

Mas há, no campo dos direitos humanos, uma questão fundamental para ser introduzida e que me separa também do governo. É a questão da Guerrilha do Araguaia, a questão do direito das famílias terem acesso à ossada de seus entres queridos. É também a questão de termos acesso aos documentos históricos do país. Essa é uma questão da democracia. A questão da família ter o direito de recuperar a ossada de seus entes é uma questão da civilização brasileira.

As Forças Armadas estão convencidas disso e se um pequeno grupo de militares não aceitar, nós temos de dizer claramente para eles que não negociamos os princípios da civilização brasileira porque é um grupo de militares insatisfeitos. 'Que vengan los toros', como dizem os espanhóis. Que façamos como fizeram os chilenos e os argentinos que ajustaram adequadamente as contas com o passado.

De todas as questões ambientais que me dividem no momento, na relação com o governo, selecionei uma sr. Presidente, a medida provisória que autoriza a plantação de sementes transgênicas introduzidas clandestinamente no Brasil. Se tivéssemos o poder de realizar aqui uma teleconferência com 100 estadistas do mundo inteiro e perguntássemos a eles o que fariam se plantassem um alimento transgênico clandestinamente em seu país, eles responderiam uníssonos: 'Eu apreenderia e tiraria de circulação'.

Isso foi feito no Canadá. O Canadá discutia dois alimentos transgênicos, um que já estava autorizado e outro ainda em processo de exame. Quando surgiram no meio ambiente canadense vestígios daquele que não estava autorizado, o governo obrigou os plantadores a recolhê-los, eles tiveram prejuízos de US$ 12 bilhões, a Monsanto teve um prejuízo de US$ 24 milhões.

Mas qual era a mensagem implícita? A mensagem era a seguinte: O Canadá autoriza a produção de transgênicos desde que passe pelos crivos do Estado, e isso é uma questão fundamental que não foi examinada. Na verdade, quando o governo cede nas questões, além da mensagem perturbadora que passa para os outros, que põe em perigo o meio ambiente, ele se mostra realmente incapaz de entender os tempos modernos.

Essa geração de políticos que agora chega ao governo ela ainda trabalha muito com os critérios da produção e da distribuição de bens materiais, não compreende que dirigir uma sociedade hoje, além de trabalhar a produção e distribuição de bens materiais, nós trabalhamos a produção, a distribuição e a administração dos riscos e isso nós não perdoamos ao governo brasileiro nem perdoamos a elite do Rio Grande do Sul.

Obrigar o povo brasileiro a comer uma soja transgênica sem que haja um rótulo avisando que essa soja é transgênica. E não me venham dizer que previram isso nos artigos --porque isso está previsto-- mas eu estou falando da realidade que nós todos conhecemos. Se alguém quisesse rotular a soja transgênica no RS hoje, bastava controlar 15 empresas, nós já teríamos esse trabalho feito, mas nada foi feito. Não há direito de obrigar os consumidores brasileiros a consumirem um produto sem que saibam o que realmente estão consumindo.

O Presidente da República, num certo momento, disse que gostaria de discutir as questões dos transgênicos apenas cientificamente. Mas senhores, se nós reduzirmos a questão dos transgênicos à questão científica, nós vamos abstrair a questão econômica, nós vamos abstrair a questão política, vamos abstrair a questão social e vamos abstrair o fato também de que no alimento há a questão cultural. Do ponto de vista estritamente científico, sr Presidente, não há nenhuma contra-indicação ao canibalismo. No entanto, nós não comemos carne humana. Pelo menos não havia contra-indicação ao canibalismo até o surgimento da doença da vaca louca.

Eu trabalho nesta questão dos transgênicos com o princípio de precaução e não com a síndrome do pânico. Nós temos condições de oferecer ao governo os caminhos, mas é necessário que ele tenha interesse também de corrigir o erro. Nesse momento, o que nós vemos no governo é uma incapacidade de perceber que cometeu um grande erro, uma incapacidade de discutir com seus adversários uma saída honrosa para esse impasse em que ele nos colocou.

Eu gostaria de usar também algumas palavras finais, sr. presidente, para examinar criticamente a minha passagem por esta experiência comum. Intelectualmente eu tinha a visão da precariedade do Estado e das circunstâncias em que nos movemos. O domínio da política pela economia, a transformação dos governantes em administradores do caos, vem dom próprio processo de globalização. O que se viu no espaço aqui deste Parlamento tem comparação com as bolsas de valores. As bolsas de valores são espaços onde as pessoas gritam e às vezes tem uma psicologia de ordem. No entanto as bolsas de valores passaram a prevalecer sobre as decisões que nós tomamos no Parlamento.

A irracionalidade prevalece sobre a racionalidade e nós políticos passamos a ser funcionários do grande capital, tentando aplacar os seus sustos, as suas neuroses e os seus medos. Ora, não era esse o caminho que eu queria trilhar. Existe uma autonomia da política, existem políticos do século passado que têm uma visão do conjunto, uma visão de longo alcance e aplicam essa visão em cada circunstância de seu cotidiano. Mas quando se transforma num governo apenas gerando os interesses do grande capital, apenas gerando os problemas da bolsa de valores e correlatos, quando se transforma isso nós perdemos a visão do futuro.

Administrando um cotidiano nós passamos a nos preocupar apenas com as eleições e estar no governo, mas a nossa geração não pode se contentar com apenas estar no governo e dizer que quer continuar no governo. Ela tem de dizer porque que está no governo, o que estamos fazendo no governo, o que queremos do governo, e isso infelizmente não foi feito.

Eu poderia ter percebido isso, mas me deixei também levar pelo entusiasmo popular e meu entusiasmo. Eu achei que havia uma saída para o Estado, mas eu sabia que o Estado está em frangalhos, eu sabia que o grande capital nos deixou uma margem mínima de atuação, mas achava que era possível criar. Mas hoje eu não digo claramente que meu sonho acabou. Eu digo claramente que eu sonhei o sonho errado, e o sonho errado foi confiar que nós podíamos fazer tudo aquilo que nós prometíamos rapidamente e confiar que poderíamos fazer tudo aquilo num período de quatro anos ou imediatamente. Não, o sonho foi pior ainda, foi confiar que era possível transformar o Brasil a partir do Estado, foi não compreender que o Estado já perdeu o dinamismo e que o dinamismo agora se encontra na sociedade. Se o Brasil vai se transformar, será através da sociedade, é a sociedade que irá impor os caminhos e o Estado virá, talvez cansado, talvez lento, mas virá acompanhando o nosso caminho.

Eu quero dizer que eu fiquei muito triste até os dias passados porque eu passei a partilhar desse erro da sociedade brasileira que era esperar um governo salvador e ficar triste, amargurado porque o governo salvador não tomava as medidas que nós esperávamos.

Aí eu recuperei a minha alegria quando disse 'Não, eu vou sair e vou buscar os meus caminhos'. E com isso abri uma ampla clareira, pude respirar pela primeira vez, estou respirando muito saindo desse clima sufocante das esperanças negadas.

Eu gostaria de apresentar um quadro mais amplo, mas eu prometo novos pronunciamentos através da minha atuação que eu acho que ficará mais clara a visão do momento histórico que nós vivemos. quanto mais prolongarmos a cerimônia do adeus, menos tempo teremos para tratar do próximo passo, o enfrentamento dos temas urgentes como a questão dos transgênicos, já mencionada.

Como vossa excelência sabe, sr. presidente, eu apresentei um projeto de Lei criando um território federal do Pantanal, que iria se separar do Mato Grosso. e veja. E vejo o presidente dizer que há projetos de industrialização, de exploração de minérios e outros no Pantanal. Olha, essas visões divergentes são importantíssimas para o futuro do Brasil. O triunfo de uma ou outra concepção é importantíssima para o futuro do Brasil. quando entrei no PT, trabalhei com os verdes para se unirem aos trabalhadores eu raciocinava ainda com um quadro europeu, eu pensava que o PT poderia desempenhar neste processo um papel que a social democracia criou. Mas agora quando o PT chega ao governo, vê-se que a perspectiva dos dirigentes é parecida com a dos dirigentes comunistas do leste europeu. Uma visão de produtivismo estreita.

Então, a sucessão destes desencontros entre mim e entre muitos companheiros do governo foi me levando à compreensão de que realmente essa experiência da esquerda só poderia ser bem classificada numa frase do meu querido companheiro e eleitor Cazuza: "É um museu de grandes novidades".

Eu deixo hoje portanto de pertencer a um partido e a um governo mas não levo nenhum sentimento de separação. De uma certa forma todos estamos juntos nessa trama que é a História do Brasil. Às vezes mudamos o papel, mudamos de lugar, mudamos o figurino, mas vamos continuar sempre parte dela e como parte eu quero dizer àqueles que às vezes se esquecem da longa caminhada que é a História Do Brasil, que estarei aberto e disposto a ajudar na sociedade para o governo, se não reencontrar seu caminho, pelo menos perder esse ritmo lento e exasperante ao qual nos submeteu nestes primeiros nove meses.

Muito obrigado ser. presidente, muito obrigado a todos."
 

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