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27/12/2003 - 08h59

Ex-guerrilheiro diz que nunca pediu promoção

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FERNANDA DA ESCÓSSIA
da Folha de S.Paulo, no Rio

Alvo de uma homenagem que provocou um mal-estar no governo --a proposta de promoção a general-de-brigada--, Apolonio de Carvalho, 91, disse que não desejava a polêmica e que nunca pediu a promoção. Um dos maiores nomes de esquerda brasileira, Carvalho lamentou a permanência de "antigas discriminações" e a dificuldade de reconhecer o direito de liberdade de opinião.

Em 1936, Carvalho, então segundo-tenente do Exército e militante da ANL (Aliança Nacional Libertadora), foi expulso nos desdobramentos da ação repressiva que se seguiu à Intentona Comunista de 1935, da qual diz não ter participado. Lutou pela República na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), integrou a Resistência Francesa contra o nazismo na Segunda Guerra (1939-1945) e foi guerrilheiro contra o regime militar no Brasil (1964-1985).

Preso e torturado durante o regime, integrou o grupo de 40 presos libertados no sequestro do embaixador da Alemanha, em 1970. Voltou ao Brasil com a anistia e foi reintegrado ao Exército como coronel da reserva. Foi um dos fundadores do PT, em 1980.

Em 2002, requereu à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça a contagem de todo o seu tempo de serviço. Há duas semanas, a comissão lhe concedeu indenização e renda mensal vitalícia equivalente à de general-de-brigada.

A polêmica surgiu quando o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, defendeu, além da indenização, promoção oficial ao generalato pelo presidente da República. O Exército rebateu dizendo que a promoção de Carvalho contraria a legislação, pois ele não teria cumprido os requisitos necessários. O ministro da Defesa, José Viegas, disse que Carvalho não será promovido. Carvalho não quis alimentar a polêmica.

Folha - Como o sr. recebe a polêmica que se seguiu à proposta de promovê-lo a general?
Apolonio de Carvalho
- Com muita preocupação. Nós não estamos absolutamente em nada daquilo que pudesse ser origem desse mal-estar criado. Na realidade, como as coisas se passaram? Na minha trajetória militar tenho essa situação de segundo-tenente de artilharia cassado em 1936, sem ter passado por nenhum processo e sem nem sequer ter sido ouvido por uma autoridade judicial. Depois de mais de meio século de afastamento e isolamento do Exército com esse ato de arbitrariedade, passei pelas benesses da Anistia de 1979. Tenho uma condição nova e mais alta. Pela Anistia e pela Constituição, sou hoje não apenas um antigo segundo-tenente. Sou coronel da reserva do Exército. É necessário marcar bem que isso [elevação a general] se trata de promoção que --eu queria repetir-- jamais pedi.

Seria inteiramente falso dizer que eu insistiria por isso. Eu jamais pedi. Foi um ato generoso do Ministério da Justiça, querendo me fazer uma homenagem, que no fundo é um gesto simbólico que não se refere só a mim, mas a dezenas de outros coronéis da reserva que estão lutando pelas mesmas reivindicações. A aplicação da Lei da Anistia, em 1979, prejudicou-nos, porque tomou-nos as benesses que adviriam do período de nossa atividade militar, o tempo de serviço do militar.

Folha - Foi isso que o sr. pediu?
Carvalho
- Exatamente. Jamais solicitei a promoção a general. Quando soube do gesto generoso do senhor ministro da Justiça, eu agradeci e disse que nunca pensamos nisso, mas agradecemos muito sensibilizados.

Folha - O sr. esperava polarização ideológica sobre o tema?
Carvalho
- Eu não desejava. Não descartava que houvesse reservas nesse sentido, porque, afinal de contas, eu tive a minha patente de oficial cassada sem processo e sem nem sequer ser ouvido. Eu me habituei também à surpresa de atos de arbitrariedade que me feriram desde os meus 24 anos. Portanto, não descartava essa possibilidade, mas nunca desejaria que houvesse esse mal-estar. Apenas reivindiquei o reconhecimento de direitos adquiridos.

Folha - A que o sr. atribui reações tão viscerais?
Carvalho
- Eu vou partir da origem. Esse confronto de posições no interior do governo surge daquilo que me parece ter sido um engano da assessoria do comando do Exército, que achava que uma idéia de promoção se chocava com uma antiga lei de 1972 que prescrevia os critérios de promoção do Exército. Apenas esquecia duas coisas: essa lei se refere à imensa massa de oficiais e militares em atividade. Já os que, pela Constituição e pela Anistia, fomos reincorporados ao Exército como coronéis (é o meu caso e o de dezenas de outros), nós, militares inativos, baseamos todos os elementos de nossa atividade numa lei mais recente, que rege os problemas concernentes aos militares da inatividade. Suponho que houve um engano da assessoria.

Folha - O sr. vê uma perseguição?
Carvalho
- Eu não diria perseguição. Eu diria permanência de antigas discriminações, marcadas talvez essencialmente por dificuldades em reconhecer o direito diferente de opinião, a liberdade diferente de pensamento, o que não impede absolutamente a comunhão de esforços em comum, a que nos convida a Lei da Anistia, em torno do nosso povo, do nosso país e de objetivos comuns.

Folha - Qual a sua avaliação do governo Lula até agora?
Carvalho
- O governo Lula representa algo inteiramente novo na história do nosso país. Pela primeira vez, temos a possibilidade de olhar os problemas do nosso povo mais de perto, temos a possibilidade de unir forças para superar velhos males e velhos elementos de atraso que marcam a nossa população e a vida do nosso país. Podemos também pensar em um regime de democracia mais ampla, apoiada no povo. Penso que participar do empenho desse governo, que efetivamente nasce do povo, é um dever.

Folha - O sr. era contra a expulsão dos chamados radicais do PT. O que o sr. achou da decisão?
Carvalho
- Eu queria marcar minha recusa a tudo que se pareça ou se aproxime a atos de autoritarismo e esquecimento do que representa o valor da diferença no convívio político e social. Ter posições diferentes, ter diferenças de opiniões é traço normal de democracia na sociedade e nas instituições políticas. Penso que as pessoas que foram visadas cometeram atitudes profundamente marcadas pelo desrespeito a pessoas de dirigentes e, ao mesmo tempo, atitudes públicas que marcaram um deslize no quadro da convivência política e social. Mas penso que era necessário levar em conta que esses militantes, em 20 e tantos anos de vida do PT, acumularam uma sucessão de sacrifícios em prol da militância política. Se a direção do PT se coloca na posição de credor desses militantes, esses militantes também não são apenas devedores. Eles têm também uma posição de credores, pelos sacrifícios que ofereceram à causa do partido.

Folha - Com a Anistia, militantes de esquerda e pessoas que atuaram na repressão retomaram suas atividades. Sua promoção causou polêmica. Como o sr. se sente?
Carvalho
- Acho que a anistia em si visava ao conjunto das pessoas que haviam sofrido injustiças, passado pela recusas a direitos adquiridos. É, portanto, uma coisa extremamente ampla, aberta. Houve distorções na aplicação da Lei da Anistia. O que verdadeiramente chocou uma parte da opinião pública em nosso país, entre os que combatíamos por uma anistia ampla e irrestrita, é que a Lei da Anistia abrangeu também, na sua aplicação, mesmo os elementos que tinham ajudado as forças de repressão a negar direitos humanos, as liberdades públicas. Essa distorção na aplicação da anistia representa algo que feriu profundamente a justiça, na visão dos efeitos da grande batalha nacional por mais democracia, mais liberdade e mais direitos humanos. Acho que foi muito mais aberta, muito mais ampla para o outro setor, embora, para os setores que haviam se sacrificado pelas liberdades, tenha sofrido distorções e limitações.

Folha - Após ser condecorado por governos estrangeiros, o sr. se sente magoado com essa polêmica?
Carvalho
- De maneira nenhuma. Compreendo que haja elementos que mantêm sua repulsa, sua recusa ao que é diferente no quadro do pensamento político, das aspirações, da liberdade de pensamento. Compreendo que há muito confronto e muita contradição na sociedade. Um cidadão ou uma cidadã opor-se à visão realista dessas contradições seria fechar os olhos às leis que marcam toda a história da natureza e da sociedade. Sem contradições não há desenvolvimento, não há luta de idéias e fortalecimento de idéias novas, não há renovação. O confronto de idéias é absolutamente necessário.
 

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