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20/12/2004 - 09h00

Acesso a arquivo sobre golpe no Brasil é mais fácil nos EUA

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FABIANO MAISONNAVE
da Folha de S.Paulo, em Washington

Enquanto o Brasil discute a liberação de seus documentos sobre a ditadura militar, na internet já é possível ouvir o presidente Lyndon Johnson (1963-69) orientar um assessor "a estar preparado a fazer tudo que precisarmos" para ajudar os golpistas, em pleno dia 31 de março de 1964.

Esse e outros documentos sobre o envolvimento americano no golpe militar estão disponíveis para qualquer pessoa por dois motivos: a existência de uma sólida lei de 1966 regulamentando o acesso a documentos federais (assinada pelo próprio Johnson) e o trabalho da ONG The National Security Archive (NSA), responsável pela liberação e catalogação de milhões de papéis do governo federal americano.

Um dos principais analistas do NSA e especialista em América Latina, o pesquisador Peter Kornbluh disse, educadamente, que o Brasil "está um pouco atrasado" no tema em comparação com vizinhos como Argentina e Equador. Para ele, o modelo norte-americano pode servir de exemplo para o Brasil, mas diz que o governo George W. Bush tem dificultado cada vez mais a obtenção de documentos.

Kornbluh, 48, é o autor do livro "Pinochet: os Arquivos Secretos", que acaba de ganhar uma versão espanhol (editora Critica), sobre o apoio do governo do presidente Richard Nixon ao golpe que derrubou o presidente Salvador Allende, em 1973.

O livro esteve no centro da polêmica que envolveu, no início do ano, o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger e o brasilianista Kenneth Maxwell, que acabou renunciando ao cargo de diretor de estudos sobre a América Latina no Council on Foreign Relations.

Leia, a seguir, a entrevista de Kornbluh concedida à Folha em seu escritório, em Washington. Os documentos sobre o Brasil estão no endereço http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB118/index.htm

Folha - O Brasil está atravessando um intenso debate sobre a liberação de documentos da época da ditadura militar. O país está atrasado em relação aos vizinhos?

Peter Kornbluh - Há um movimento significativo para o acesso à informação na América Latina. Alguns anos atrás, o México aprovou uma consistente lei sobre liberdade de informação. Eles iniciaram agências de monitoramento, há grupos na sociedade civil pressionando o governo para implementar a lei, é realmente um modelo para o restante da América Latina. O Peru e o Equador aprovaram as suas leis; na Argentina, o presidente Néstor Kirchner tem empurrado a liberdade de informação por decretos presidenciais e apresentou uma legislação no Congresso.
Pela América Latina, é um grande tema não apenas para países como o Brasil, que querem examinar o seu passado, mas também trata-se de combater a corrupção e fortalecer a democracia. O Brasil, que deveria ser um líder para toda a região, com seu tamanho, modernidade e poder econômico, está um pouco atrasado.

Folha - Os EUA, que têm uma lei sobre o assunto desde 1966, são um modelo para o Brasil?

Kornbluh - Os Estados Unidos têm um forte conjunto de leis, não apenas a Foia (Lei sobre a Liberdade de Informação). Temos uma lei que obriga o governo e seus funcionários a preservar os documentos. Temos a Foia, que dá o direito a qualquer pessoa de solicitar documentos a agências do governo, forçando-as a revisar esses documentos para ver se podem ser liberados. Essa lei saiu fortalecida após o escândalo do Watergate, em meio à Guerra do Vietnã. A opinião pública americana ficou cansada das mentiras do presidente Richard Nixon. A Foia foi então reescrita em 1974, depois da renúncia de Nixon. As mudanças foram vetadas pelo presidente Gerald Ford, mas o Congresso reverteu o veto. Temos também o sistema das bibliotecas presidenciais, que também preservam documentos.

Os sistemas que temos para preservar, catalogar e eventualmente liberar documentos são certamente um modelo para um país moderno e grande como o Brasil. Mas na América Latina não há, como aqui, uma cultura sobre o direito de saber.

A sua organização tem criticado o governo do presidente George W. Bush por aumentar o número de documentos sigilosos. É um problema sério neste momento?

Kornbluh - O governo Bush é uma administração sigilosa. Eles foram empossados há quatro anos determinados a aumentar o poder do Executivo segurando informações. A primeira coisa que Bush fez foi um decreto no qual os papéis presidenciais seriam protegidos por mais alguns anos. Dessa forma, ele protegeu os documentos de seu pai e de muitos de seus assessores que também haviam trabalhado no governo dele. E, certamente, depois do 11 de Setembro, o governo Bush tem feito muito mais operações secretas.

O sigilo leva ao abuso de poder. Como disse um famoso juiz, Louis Brandeis: "A luz do sol é o melhor desinfetante". Hoje [sexta], soubemos pelo "Washington Post" que há um centro de detenção secreto em Guantánamo (Cuba), onde os prisioneiros são mantidos sem ninguém saber nem sequer quem são eles.

Isso é o equivalente aos "desaparecidos" na América Latina.

Ao mesmo tempo, devido aos escândalos com relação ao Iraque e ao 11 de Setembro e com as investigações e comissões do Senado, estamos recebendo muito mais informações sobre o que ocorreu dentro do governo e tendo acesso a documentos que nunca teríamos previsto que veríamos tão cedo com relação à Guerra do Iraque e à luta contra o terrorismo.

Folha - O sr. tem pesquisado os documentos americanos sobre o envolvimento de Washington com as ditaduras sul-americanas. No caso brasileiro, quais são os documentos que ainda não foram liberados?

Kornbluh - Há dois conjuntos de documentos que estão faltando. A CIA [inteligência americana] estava claramente envolvida no Brasil, em 1964 e no que veio depois. Em alguns casos, sabemos quem eram os agentes da CIA. Eu acredito que a CIA tenha liberado dinheiro para pagar alguns generais brasileiros, esse tipo de coisa. Mas não temos os detalhes sobre isso porque a CIA vem mantendo essa documentação em segredo durante todos esses anos. Quase tudo que sabemos sobre o envolvimento americano vem de documentos do Departamento de Estado.

Há outra área que continua sigilosa, que é como a CIA e os militares americanos colaboraram com os generais durante a "guerra suja" no Brasil. O Brasil era um país muito importante em meados dos anos 1960, e os EUA queriam assegurar que o poder da esquerda fosse cortado, reprimido. Eu acho que os EUA colaboraram com os militares brasileiros a partir da metade dos anos 1960 em diante.

Em 1970, quando Salvador Allende foi eleito presidente do Chile, o Brasil foi o primeiro país que Nixon procurou para dizer: "Vocês trabalharão conosco para ajudar a enfraquecer Allende e a apoiar secretamente os militares chilenos?". Não sabemos muito sobre em que medida o Brasil colaborou com os Estados Unidos nos esforços para enfraquecer a esquerda pela América Latina.

Folha - O seu livro sobre Pinochet estava no centro da controvérsia entre Maxwell, que escreveu uma resenha favorável a ele, e Kissinger. O que aconteceu?

Kornbluh - É uma história sobre como antigos formuladores de políticas, como Kissinger, são capazes de tentar distorcer a história mantendo em segredo por muitos anos documentos do governo com eventos dos quais eles participaram. Kissinger manteve muitos documentos com ele, inclusive transcrições de ligações telefônicas, por quase 25 anos, até a minha organização forçá-lo a devolvê-los para o governo. Esses documentos mostram muitas coisas, inclusive o papel do governo americano em enfraquecer o governo Allende. A controvérsia envolvendo Maxwell é, no fundo, uma luta sobre a história, e não sobre uma resenha de livro.

Folha - Como vocês conseguiram recuperar os documentos levados por Kissinger?

Kornbluh - Nós preparamos uma ação judicial não contra Kissinger, mas contra o Departamento de Estado por ilegalmente permitir que ele levasse esses documentos do governo. Nós mostramos a ação para os advogados do Departamento de Estado e do Arquivo Nacional e dissemos que entraríamos na Justiça. Eles disseram: "Isso é muito forte, por que vocês não esperam, nós falaremos com Kissinger para dizer que seremos condenados, o que seria muito ruim para ele e para nós". Eles falaram com o Kissinger, e ele disse: "Bom, eu deixo vocês fazerem cópias". Eventualmente, conseguimos a liberação desses documentos, que são muito, muito importantes.

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