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04/12/2006 - 09h27

"Na saúde não se cortam gastos, mas desperdícios"

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LAURA CAPRIGLIONE
da Folha de S.Paulo

O médico Claudio Lottenberg acha que o Brasil tem falado demais em desenvolvimentismo e infra-estrutura, esquecendo-se de que, sem saúde, todo o resto não funciona. "Uma pessoa desestruturada nesse parâmetro mínimo não consegue se desenvolver." Com o foco nesse cidadão-paciente, Lottenberg, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, escreveu o livro "A Saúde Brasileira Pode Dar Certo" (Ed. Atheneu, 125 págs., R$ 40), a ser lançado amanhã, a partir das 19h, na livraria Fnac da avenida Paulista. O objetivo é mostrar que um atendimento médico de qualidade, sustentável e acessível à população pode ser conseguido, desde que se usem ferramentas adequadas de gestão e que se aplique a máxima que orienta a obra: "Na saúde não se cortam gastos, mas desperdícios".

FOLHA - O que a experiência como gestor de um grande hospital privado pode ensinar à saúde pública?
CLAUDIO LOTTENBERG -
Que a saúde tem de ser administrada com ferramentas de gestão, sob pena de se tornar absolutamente insustentável, tanto no setor público, quanto no privado. Só para comparar, a economia da área da saúde apresenta índices inflacionários cinco vezes superiores aos da economia americana. Cada vez que a inflação americana sobe 2%, sobe 10% na economia médica.

FOLHA - Por que isso acontece?
LOTTENBERG -
Veja, por exemplo, o custo que a tecnologia agrega à prática assistencial. A gente é agredido maciçamente pela indústria, que quer vender a tecnologia, sem mensurar se aquela tecnologia agrega ou não agrega valor. É preciso determinar com precisão se aquela nova terapêutica é superior àquilo tradicionalmente usado, ou se, apesar do custo extra, trata-se de algo que não vai ajudar em nada. A idéia é se municiar de mecânicas de qualidade, de modo que você não corte custos, mas corte desperdícios. Esse é o conceito básico.

FOLHA - Dê um exemplo, por favor.
LOTTENBERG -
Salta aos olhos o fato de algumas cadeias de laboratórios particulares apresentarem 80% dos seus exames absolutamente dentro da normalidade. Tem exame que você pede e, graças a Deus, dá normal. Mas, se em 80% dos casos está vindo normal, isso significa que nós não estamos remunerando a esfera privada pela competência, mas pela incompetência, pelo desperdício.

FOLHA - Eu, quando vou ao médico, sinto-me segura vendo-o pedir vários exames de laboratório...
LOTTENBERG -
Você e quase todo mundo, que se sentirá injustiçado se não fizer uso de todas as tecnologias disponíveis, sejam necessárias ou não. O nome já diz: são exames complementares. Têm de estar associados à inteligência médica. Os leigos têm de ser informados de que excesso de exame não é equivalente a bom atendimento. Por outro lado, também há exemplos em sentido contrário, em que tecnologias novas conseguem economia no processo, além de agregar valor.

FOLHA - Como?
LOTTENBERG -
Muitos convênios de saúde se negavam a cobrir as cirurgias bariátricas, ou cobriam apenas em casos de obesidade mórbida, por julgarem o procedimento caro. Aí, começaram a perceber que, ao liberar a cirurgia bariátrica quando clinicamente indicada, os pacientes começavam a melhorar de hipertensão, de diabetes --melhorava a qualidade de vida do paciente. Ou seja, a nova tecnologia tinha valor real. Ela até custava muito no começo, mas, no final das contas, você gastava menos com as complicações decorrentes da obesidade. A mesma lógica aplica-se às cirurgias de miopias.

FOLHA - Nesse caso, não se trata de um luxo?
LOTTENBERG -
Fala-se que a cirurgia de miopia é cara, é supérflua. Mas, se eu imaginar que o indivíduo precisa enxergar, que ele será obrigado a fazer exames oftalmológicos periódicos, que trocará de óculos pelos próximos 25 anos, a cirurgia acaba valendo a pena --e muito. Há procedimentos que podem até parecer mais caros em um determinado momento, mas no médio e longo prazos saem mais em conta para o cidadão e para a sociedade. E, se é a sociedade que custeia tudo, temos de começar a municiá-la de ferramentas técnicas de aferição sobre procedimentos e tecnologias novas. O importante é saber que a saúde deve ser pensada sempre em termos de processo, de longo prazo.

FOLHA - Na vida de um cidadão pobre, os problemas são a falta de hospitais e de medicamentos...
LOTTENBERG -
Não são. São de gestão também. A gente assistiu há pouco, no debate eleitoral, a uma competição entre candidatos para ver quem construiria mais hospitais, quem distribuiria mais medicamentos. É claro que, em regiões longínquas do país, ainda é necessário inaugurar hospital. Mas veja o caso de São Paulo. A cidade tem mais de 30 hospitais, 15 na esfera municipal, subordinados à Secretaria Municipal da Saúde. Nesses hospitais, o tempo médio de permanência do paciente é superior a 11 dias. Em hospitais privados, entre os quais o nosso, o tempo médio de permanência é de 4,4 dias. O índice de giro dos hospitais privados é de 7 a 8, o que significa que, num mesmo leito, passam de 7 a 8 pacientes por mês. Nos hospitais públicos é um terço disso. Diante desses dados, vem a pergunta: o que é que está faltando? É leito? Ou é performance? Na minha visão, é performance.

FOLHA - E como resolver isso?
LOTTENBERG -
A gente tem hoje um modelo de assistência à saúde que é "hospitalocêntrico". A gente acha que o hospital é a porta de entrada --o que é um erro, porque se trata de uma estrutura muito cara. No mundo todo, a medicina está se ambulatorizando. Não são mais necessários tantos leitos. Há dez anos, o tempo médio de permanência em um hospital americano era de 5,6 dias. Hoje, mais de 60% dos pacientes nos hospitais americanos ficam menos de cinco horas sendo atendidos. O que se necessita no fundo é melhorar a performance: hospitais mais enxutos, processos ambulatoriais acontecendo onde têm de acontecer --nos ambulatórios-- e uma maior integração com outras formas de assistência, de modo a que o hospital deixe de ser uma casa de longa permanência. Os hospitais não são locais para isso.

FOLHA - Muitos pacientes pobres não dispõem de locais com um mínimo de condições para atendê-los enquanto eles se recuperam...
LOTTENBERG -
Tem de haver uma política de assistência social que abrigue esse paciente com dignidade, com serviço de enfermagem, se necessário for. Mas não precisa e nem deve ser um local com infra-estrutura caríssima como é a de um hospital. Isso é desperdício.

FOLHA - O sr. defende que a remuneração do médico seja feita segundo os resultados obtidos. Não é arriscada essa lógica, quando aplicada a doentes terminais, por exemplo?
LOTTENBERG -
Eu acho que se o sistema for medido apenas por indicadores econômicos, a gente corre, sim, esse risco. Mas, se a medição de performance do sistema tiver indicadores de qualidade, não. A minha remuneração como médico será maior se eu gastar menos com o paciente? Isso deve ser verdade apenas em parte. A outra parte é: quanto tempo estou demorando para reintegrar esse indivíduo a sua vida normal? Qual é a taxa de mortalidade? A taxa de infecção? Qual o índice de formação de escaras [destruição localizada da pele que acomete os doentes acamados]? Quando se usam elementos como esses para avaliar a performance do profissional, pode-se pagar por performance com absoluta segurança para o paciente.

FOLHA - O país assiste a um envelhecimento acentuado da população. Como deve ser a preparação para a incidência muito maior de doenças crônicas, típicas da idade?
LOTTENBERG -
Hoje, se você observar o que está acontecendo nos hospitais, verá que 69% das internações já se referem a pacientes que apresentam doenças crônicas. Nada menos do que 80% das diárias hospitalares são usadas com pacientes crônicos. Com o aumento da expectativa de vida da população, esses índices devem aumentar ainda mais.

FOLHA - Como o sistema de saúde deve enfrentar o problema?
LOTTENBERG -
A primeira coisa é focar no que é mais prevalente. Hoje, em São Paulo, as pessoas sofrem principalmente de doenças neurocardiovasculares, com destaque para os acidentes vasculares cerebrais. Sabendo disso, pode-se levantar os recursos disponíveis e as necessidades de cada região. Pode-se priorizar a aquisição e o uso de equipamentos necessários ao tratamento desses problemas. Esse é o valor da epidemiologia, que é o que poderíamos de chamar "marketing de produto" da área médica.

FOLHA - O que é isso?
LOTTENBERG -
É a ferramenta que me permite prever o serviço médico que terá demanda. Se você sabe que uma região tem alta incidência de hipertensos, você pode fazer campanhas preventivas, adquirir equipamentos para atender mais prontamente os necessitados, tentar reduzir as seqüelas. Evidentemente, isso não significa deixar sem atendimento os pacientes com doenças mais raras, mas é preciso focalizar os maiores esforços nas enfermidades que afetam parcelas maiores da população.

FOLHA - O senhor permaneceu apenas seis meses à frente da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo. Por quê?
LOTTENBERG -
O prefeito [na ocasião, José Serra] me incumbiu naquela época de organizar a secretaria. Fiz mais do que isso, fiz um diagnóstico, com o "Atlas da Saúde", uma radiografia da saúde paulistana. Reduzi o quadro de 33 subsecretários da Saúde, que era o que São Paulo tinha, para apenas cinco. Quem teve peito de fazer um diagnóstico dos hospitais e trazer esses indicadores à luz do dia? Ninguém conhecia isso. Hoje, pode-se saber como cada um deles gasta o dinheiro que recebe. Quem teve peito para padronizar os medicamentos oferecidos à população? Todo mundo queria aqui uma lista de 300 medicamentos. Eu fui lá e reduzi para 200 e poucos. Fiz isso a partir do parecer de um comitê científico que estudou as informações epidemiológicas. E por quê? Porque não podia admitir que, por falta de uso, se perdessem medicamentos. Com todas essas ações, você mexe em muitos interesses. Chegou um determinado momento em que eu achei que o desgaste pessoal tinha ficado grande demais.

FOLHA - E voltou para o Einstein...
LOTTENBERG -
O Einstein tem 25 áreas de São Paulo, onde atende pacientes com gratuidade. Tem sete unidades de ultrassonografia e cinco consultórios de oftalmologia voltados para a população carente. Cuida de unidades públicas de atendimento médico ambulatorial, tem parceria com o Programa de Saúde da Família. Estou fazendo mais do que se estivesse na secretaria. Eu falei até para o prefeito [Serra]: "Para eu fazer na saúde tudo o que tem de ser feito, lamentavelmente, acho que preciso sentar no seu lugar, não dá para trabalhar com você". Eu não pretendo me candidatar a nada, mas acho que conhecimento tem de ser usado para o bem de quem necessita dele.

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