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12/10/2003 - 06h56

Macaca-ciborgue "incorpora" braço-robô

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MARCELO LEITE
editor de Ciência da Folha de S.Paulo

Duas fêmeas de macaco reso (Macaca mulatta), Aurora e Ivy, figuram entre as pioneiras de um novo tipo de ser vivo, os organismos cibernéticos, híbridos de animal e máquina. Numa palavra, ciborgues --que serão apresentados ao mundo amanhã por um brasileiro, Miguel Nicolelis.

A façanha de Aurora e Ivy foi mover um braço robótico apenas com o pensamento. Melhor dizendo, somente com seus neurônios, dezenas ou centenas deles, ligados por microeletrodos a uma rede de computadores do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA).

Como as macacas param de mexer o próprio braço, dispensando o uso do "joystick" com que haviam sido treinadas, os neurocientistas concluíram que elas haviam "incorporado" o sistema técnico em sua imagem cerebral, literalmente integrando-o ao próprio "self" --ou seja, à representação de si mesmas.

De certo modo, é o inverso do que ocorre com pessoas amputadas, que continuam a sentir um membro-fantasma. "É como se ela dividisse o cérebro, como se adicionasse um terceiro membro, de verdade", explica Nicolelis.

Imagine agora o que isso abre de possibilidades para próteses inteligentes, como mãos, braços, pernas ou cadeiras de rodas que possam --um dia-- vir a ser comandadas pela própria pessoa.

O advento das macacas-ciborgues vem anunciado com um artigo de pesquisa, e não com literatura de ficção, porque é no campo da tecnociência que essa quimera antiga está tomando corpo. Até o veículo é uma boa nova, a revista "PLoS Biology", publicada eletronicamente e de acesso aberto (www.biology.plosjournals.org), que também estréia amanhã.

O cientista brasileiro dedica o trabalho, feito com José Carmena e outros sete colegas, ao neurocientista Cesar Timo-Iaria, seu mentor na USP, onde estudou.

O experimento descrito na revista, orçado em cerca de US$ 3 milhões, é parte de um projeto de cinco anos e US$ 26 milhões --mais do que as verbas anuais de vários órgãos de fomento à pesquisa no Brasil. Em novembro de 2000, Nicolelis causara sensação com a notícia de que seu grupo havia conseguido fazer o pensamento de macacos-coruja mover outro braço robótico. Em fevereiro do ano passado, a equipe viria a repetir o feito com macacos resos, cujo cérebro é mais próximo do de seres humanos.

Com Aurora e Ivy, usou-se um circuito fechado de controle. Nos outros estudos foi empregado um sistema aberto. A diferença é que, no primeiro caso, o animal recebe informações de controle do próprio sistema que está sendo controlado, fechando o círculo. As imperfeições dos movimentos decorrentes das limitações do braço mecânico, por exemplo, são "traduzidas" visualmente.

O cursor na tela de computador à frente da macaca (que nunca vê o robô) se torna independente do "joystick" quando o experimento passa para o modo de controle cerebral. Começa a refletir o movimento efetivamente executado pelo membro mecânico com base apenas nos sinais cerebrais interpretados pelos sete modelos matemáticos no computador.

As pequenas diferenças entre o que faz na barra do "joystick" e o que vê acontecer na tela logo levam a macaca a perceber que há algo de errado. Por tentativa e erro, tenta compensar mentalmente as diferenças, até se dar conta de que o pensado é mais eficaz que o executado --e larga a mão.

O pesquisador, palmeirense agoniado, sempre que pode recorre a metáforas do futebol: "A bola vira uma extensão do pé", diz. Para Nicolelis, o diferencial da espécie humana não está só a faculdade de construir ferramentas, mas sobretudo sua capacidade de usá-las com destreza crescente. "O "self" não é delimitado só pelo corpo biológico, mas também pelas ferramentas."

Macacos como o reso alcançam uma eficiência de 90% em tarefas complexas (como a de número 3, sequencial). "Ninguém chega a isso", afirma Nicolelis, citando o escore de um grupo concorrente que trabalhou com amostragens de apenas 18 neurônios: 50%.

Para aumentar essa eficiência, a equipe tem um novo experimento preparado para começar em dez dias. Além do "feedback" visual na tela, o animal contará com dicas táteis do robô. Virão por intermédio de uma placa vibratória na altura do ombro (onde muitas pessoas paralisadas mantêm alguma sensibilidade).

De todo modo, Nicolelis afirma que é difícil chegar a 100% de eficiência. "O que importa é que o paciente consiga fazer o movimento na maior parte das vezes", diz o neurocientista.

A aplicação plena em seres humanos ainda está longe, mas ao menos Nicolelis e grupo já foram capazes de demonstrar que o aparato pode funcionar tão bem quanto nas fêmeas Aurora e Ivy.

Durante cirurgias cerebrais para tratar de pacientes com mal de Parkinson, foram implantados 32 microeletrodos do mesmo tipo em seus cérebros, por dez minutos, para amostrar o comportamento de meia centena de células. Pediu-se aos pacientes que fizessem alguns movimentos e registrou-se a atividade dos neurônios. A conclusão é que os modelos parecem ser igualmente eficientes.

Muitos anos ainda passarão antes que uma pessoa possa mover pernas ou braços biônicos só com o pensamento. Mas os primeiros passos --ou gestos-- já foram dados pelas macacas Aurora e Ivy.

Entenda o processo

Editoria de Arte/Folha Online

 

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