Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
26/10/2003 - 05h37

As espécies do humano

Publicidade

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

Não demorou muito para que a potencialmente explosiva idéia do naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882), para quem os humanos seriam só mais um ramo dos grandes macacos africanos, fosse domesticada. A imagem que aclimatou a revolução darwiniana às amarras da Grande Cadeia do Ser aristotélica é familiar para qualquer um que já tenha se interessado por evolução humana: da esquerda para a direita, primatas cada vez maiores, mais eretos e menos peludos se sucedem, em direção ao grande objetivo final, o Homo sapiens.

Cada vez mais, no entanto, fica claro que no mundo real as coisas aconteceram de um jeito bem diferente. Nenhum hominídeo (como os cientistas apelidam as espécies que pertencem à família humana) conseguiu sobreviver e passar seus genes adiante, permanecendo entre os competidores do jogo da evolução, porque se esforçou para se tornar o mais H. sapiens possível. Descobertas como a do Sahelanthropus tchadensis, um hominídeo bizarramente moderno para os seus 6 milhões ou 7 milhões de anos de idade, sugerem que a árvore genealógica humana lembra mais um arbusto, um emaranhado de galhos que se entrelaçam, se confundem e, às vezes, secam sem deixar fruto para a posteridade.

É a visão erradamente progressiva da evolução que está o problema, diz o antropólogo britânico Robert Foley, da Universidade de Cambridge, em seu livro "Os Humanos antes da Humanidade", lançado agora no Brasil. Em vez de considerar cada hominídeo como um "elo perdido" a meio caminho de se tornar humano, argumenta ele, é preciso encarar essas criaturas como entidades evolutivas autônomas, que respondiam a demandas ambientais de curto prazo.

Um dos entraves para entender isso é que as pessoas se acostumaram a fazer perguntas sobre a evolução humana que soam absurdas quando aplicadas a outros grupos animais. Ninguém se indaga à exaustão sobre qual das dezenas de espécies de antílope é a mais "avançada". As diferenças de tamanho, anatomia e hábitos entre eles claramente apareceram em resposta a condições ambientais distintas. O mesmo vale para a linhagem humana, por mais especial que ela pareça aos olhos de si mesma.

Produzir uma síntese coerente e atualizada dos intermináveis debates sobre o assunto é trabalho enervante, para dizer o mínimo. Cada novo golpe de pá nos rincões da África Oriental costuma exumar mais um candidato a fóssil revolucionário --sem falar na proverbial falta de consenso entre "lumpers" (os cientistas que enfatizam a unidade da linhagem hominídea e juntam vários espécimes numa espécie só) e "splitters" (os que acham que pequenas diferenças anatômicas já são o suficiente para criar uma nova espécie). Foley escapa com brilhantismo dessa corda bamba ao se concentrar no pano de fundo: o surgimento do andar bípede, a especificidade da inteligência humana e as razões do papel dominante da África nesse drama.

A estratégia do antropólogo revela seu potencial na abordagem do enigma do bipedalismo humano, que já suscitou todo tipo de explicação pseudobrilhante, da vantagem conferida pela postura sobre dois pés ao uso de ferramentas à possibilidade de carregar os filhotes no colo e, assim, cuidar melhor deles.

No fundo, diz Foley, a verdadeira raiz do problema foi um mero cálculo da relação custo-benefício. Os hominídeos tinham acabado de perder boa parte do lar ancestral dos grandes macacos, as florestas tropicais que sofreram um retraimento sem precedentes no fim do Mioceno, há cerca de 6 milhões de anos. Para alguns, o jeito foi descer das árvores e explorar a recém-criada savana --um ambiente aberto e quente onde a comida estava muito mais dispersa.

Uma postura bípede era muito mais eficiente para explorar esse ensolarado mundo novo, em especial quando comparada ao tipo específico de andar quadrúpede dos grandes macacos, porque reduzia a área do corpo exposta ao sol e permitia a viagem por distâncias maiores. Uma adaptação adicional foi a perda da grossa pelagem corporal que outrora recobria os hominídeos --e então boa parte do que hoje se considera humano (um primata "nu, encalorado e suarento", como diz Foley) estava no lugar. As mãos mais livres para usar ferramentas não passavam de um subproduto, um potencial que permaneceu inexplorado pelos 3 milhões de anos seguintes.

O antropólogo usa raciocínio parecido para explicar por que é tão "difícil", do ponto de vista evolutivo, se tornar humano --com toda a parafernália de linguagem e cultura complexas, tecnologia avançada e domínio global que o Homo sapiens construiu. O dilema a esse respeito é, outra vez, mera invenção humana, sugere Foley: a inteligência e a cultura surgiram em contextos específicos --não só ambientais, mas também sociais e comportamentais. Só nesses contextos é que elas foram "adaptativas" (ou seja, conferiram vantagens reprodutivas que moldaram a evolução).

Não adianta muito se perguntar por que os golfinhos não construíram uma civilização tecnológica planetária: a maravilhosa (ou terrível) combinação de eventos que produziu isso só foi possível para um grupo de primatas africanos tentando achar o que comer na savana.

Os Humanos Antes da Humanidade
de Robert Foley
294 págs. R$ 43,00
Unesp Editora (pça. da Sé, 108, CEP 01001-900, São Paulo, tel. 0/xx/11/3242-7171)
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página