Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
15/02/2004 - 03h27

Artigo: Grão de sal para células-tronco

Publicidade

MARCELO LEITE
editor de Ciência da Folha de S.Paulo

A expressão latina "cum grano salis" resume bem aquilo que está faltando em todo esse qüiproquó sobre a Lei de Biossegurança aprovada há pouco mais de uma semana pela Câmara dos Deputados: não levar a sério demais as posições extremas que vão se cristalizando quanto à proibição, nela, da pesquisa com embriões humanos --e portanto com células-tronco embrionárias.

(Isso para não falar da não menos polêmica questão do licenciamento de alimentos transgênicos, de que já tratei em outra oportunidade.)

O texto foi encaminhado ao Senado Federal, mas não havia até o meio da semana garantia de que a Casa usaria sua prerrogativa de câmara revisora para consertar os vários problemas terminológicos e conceituais apontados por especialistas, como a confusão entre terapia celular em geral e pesquisa com células-tronco embrionárias. Tampouco havia indicação de que pudesse desfazer o acordo político com bancadas de orientação religiosa, centrado na proibição à pesquisa com embriões, que permitira a aprovação da lei na Câmara.

Para quem não acompanhou de perto a questão, cabe relembrar: o texto legal aprovado impede o emprego de embriões humanos como material biológico disponível. Isso põe na ilegalidade tanto a utilização de embriões que já sobram nas clínicas de reprodução assistida quanto a chamada clonagem terapêutica --produzir embriões humanos com a mesma técnica usada para gerar a ovelha Dolly, a fim de obter deles linhagens de células-tronco. A obtenção de células-tronco por essa via acarreta a destruição da bolinha de células originada da fusão de uma célula adulta com um óvulo desnucleado, técnica chamada de transferência nuclear de célula somática.

Esse tipo de proibição genérica a um campo de pesquisa, por razões morais, não faz sentido. Em geral tais restrições acabam caindo de maduras, tornando-se minoritárias ou dogmas em desuso mesmo entre as denominações religiosas que as patrocinam. Consagrá-las em lei é criar um veto em regra para uma atividade excepcional e promissora (a pesquisa científica), que já nasce anacrônico.

Dito isso, cabe ressalvar que não se trata aí de uma espécie de guerra santa entre obscurantistas, de um lado, e iluminados, de outro. Mesmo os mais ferrenhos defensores da pesquisa fortaleceriam sua posição se abandonassem o pedestal moralista que galgaram por conta própria e demonstrassem um mínimo de tolerância com a repulsa moral legítima experimentada por aqueles que não conseguem deixar de ver um ser humano numa bola de células indiferenciadas.

Arrogar-se o monopólio da Luz (do saber, no caso) e desterrar os oponentes ao Reino das Trevas é ignorar que essa fronteira em que se inicia o humano não é algo de dado ou empiricamente determinável, muito menos algo a ser definido apenas com base em uma suposta autoridade científica. Reconhecer que tal limite é móvel e tem de ser negociado impõe-se como primeiro passo para chegar a alguma decisão mais sábia e útil, por aplicável e flexível.

O pior erro que o pesquisador pode cometer é comportar-se como um religioso. Se não se dispõe a evitá-lo por grandeza ou convicção democrática, que o faça por pragmatismo: a adoção dessa atitude sectária já se mostrou de todo contraproducente, no caso dos transgênicos.
Cientistas, supostamente, devem aprender com a experiência.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página