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07/03/2004 - 05h58

Ensaísta defende que ética científica e médica deve ser mutável

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ANTONIO OLIVEIRA-DOS-SANTOS
especial para a Folha de S.Paulo

Desde os primórdios, a arte médica cultiva o questionamento ético, alicerce sobre o qual o aperfeiçoamento técnico-científico é construído. O Juramento de Hipócrates ("Corpus Hippocraticum", cerca de 460-377 a.C.) foi ponto de partida. Todavia, apenas indolência intelectual justifica associar uma "ética absoluta" à arte médica --a ética é alvo em movimento, cuja posição espaço-temporal é determinada por variáveis sociopolíticas particulares a cada sociedade. Intervenções médicas aclamadas pela inventividade e eficácia estiveram fora do universo ético em algum momento histórico.

No Juramento de Hipócrates lê-se: "Eu não usarei de faca, nem mesmo em sofredores de cálculo, mas darei lugar para isso aos artesãos" --ao médico não caberia realizar procedimentos cirúrgicos, trabalho para os "práticos". Há pelo menos dois séculos a arte médica incorporou os procedimentos cirúrgicos, paralelamente à expansão do seu universo ético. Contudo, em 1883, Theodor Billroth afirmava: "Que nenhum homem que almeje o respeito de seus irmãos em medicina ouse operar o coração humano". O desenvolvimento de máquinas de circulação extracorpórea, entre outros avanços do século 20, moveu a cirurgia cardíaca para a esfera do possível, demandando nova reformulação ética.

Na atualidade, avanços da biologia molecular e genética começam a viabilizar procedimentos médicos que afetam as fronteiras do universo ético. O Projeto Genoma Humano, responsável pela leitura do nosso código genético, e as técnicas de clonagem de embriões de mamíferos catalisam discussões calorosas, não raro desinformadas, sobre a necessidade ou não de expansão desse universo ético. Ignorar os potenciais benefícios e custos sociopolíticos associados à medicina molecular --alternativa inercial-- é moralmente repugnante. Uma estratégia de instrução do debate passa pelo estudo crítico de cenários hipotéticos e reais.

Cenário 1 - Comunidade Genética: grupo planeja implementar seu "ideal de sociedade" através da clonagem de seu líder espiritual e de seus membros. No calor da primeira hora, grupos mais organizados da sociedade e agentes do Estado proclamam a ilegalidade dessas ações. Finalmente, cidadãos e intelectuais, ao recordarem os exemplos da inquisição católica e de regimes tirânicos, guiam a discussão para os direitos constitucionais de liberdade reprodutiva e liberdade religiosa.

Quanto dessa oposição esconde sob o "véu ético" uma agenda de preconceito religioso ou étnico? Quais os limites da liberdade reprodutiva e religiosa? Aos fundamentalistas, vale lembrar o risco do uso da própria fé como justificativa para políticas de Estado: no mínimo, seriam legitimadas ações retaliatórias quando o pêndulo político favorecer aqueles ora discriminados.

O cenário Comunidade Genética foi "realizado" pelo Movimento Raeliano, que tomou de assalto a mídia mundial em janeiro de 2003 ao anunciar o nascimento de clones de membros do culto. Mais educativa que a ausência de provas dessa suposta clonagem reprodutiva foi a reação paleolítica de parcela dos formadores de opinião mundiais. Independente do quão factível ou não seja esse cenário no futuro, há que ser debatido com serenidade e honestidade.

Cenário 2 - Individualismo e Saúde Pública: no ano de 2100, um teste sangüíneo de cada gestante detectaria aquelas cujos embriões apresentassem "alto risco" de doença genética (anemia falciforme) ou "susceptibilidade" para a maioria das doenças (hipertensão, câncer).

Em um sistema público de saúde, tal teste genético em massa seria economicamente viável apenas se os indivíduos testados "agissem" com base no conhecimento dos casos positivos --evitando a concepção ou o nascimento de fetos possuidores daqueles traços genéticos. Profissionais de saúde defendem que, como questão de saúde pública, as pessoas não deveriam ser completamente livres para "impor uma doença" sobre futuros indivíduos. Outros cidadãos argumentam que o uso de testes genéticos é estritamente matéria de escolha pessoal --em jogo, princípios de liberdade reprodutiva e autonomia sobre o próprio corpo. Nas últimas três décadas, pelo menos um Estado implementou, em larga escala, política de limitação da liberdade reprodutiva (uma criança por casal), baseado no argumento da preservação de recursos naturais e sociais. Por outro lado, vacinação é hoje "obrigatória" em inúmeros países --reduzindo a autonomia sobre o próprio corpo. Como política de saúde pública, inequivocamente, vacinas mudaram a história humana, particularmente reduzindo a mortalidade infantil, com conseqüente desaceleração da taxa de natalidade mundial. No Brasil, o primeiro programa de vacinação obrigatória contra varíola resultou na Revolta da Vacina. Agentes de saúde entravam em casas e vacinavam pessoas à força, legitimados por lei federal. Em novembro de 1904, revoltada, a população ocupa as ruas do Rio de Janeiro por mais de uma semana. A imprensa e a Escola Militar da Praia Vermelha apóiam os revoltosos, enquanto caricaturam Oswaldo Cruz, o coordenador da campanha de higienização.

Fala-se em golpe de Estado contra o presidente Rodrigues Alves. Tropas legalistas atacam os revoltosos (desconhece-se o número de mortos), cidadãos são presos e deportados para o Acre. A vacinação continua. A varíola faz nove vítimas em 1906, contra as 3.500 mortes de 1904. Graças à vacinação em massa, a varíola foi a primeira doença erradicada --o último caso ocorreu na Somália, em 1977.

Neo-eugenia

Cenário 3 - Filho Perfeito: atualmente, várias sociedades viabilizam o aborto de embriões afetados por doenças cromossômicas ou monogênicas. No ano de 2100, futuros pais têm a opção de abortar embriões cujas características genéticas associem-se a maior risco de doenças crônicas e degenerativas (câncer, doenças cardiovasculares ou neurológicas).

Ano 2200, a competição torna aceitável o aborto de fetos com características "não-ótimas", como por exemplo "inteligência" possivelmente abaixo da média populacional ou certos traços anatômicos (altura, cor dos olhos). Usando o aparato estatal, políticos nacionalistas legitimam o comportamento dos pais, criando espiral de "melhoramento genético" e discriminação, institucionalizada através de "certificados de melhoramento genético" reconhecidos pelo Estado.

O medo associado a esse cenário, compartilhado por tantos de nós, parece justificado. Mas, como um cenário iniciado com uma questão de saúde e liberdade individual, desaguaria em pesadelo discriminatório similar a Auschwitz (1940-1945) ou à escravidão em fazendas brasileiras (1549-2004)? Alexis de Tocqueville empresta-nos uma resposta: a idéia de Tirania da Maioria ("Democracia na América", cap. 15, 1835). Apenas quando o Estado democrático delinqüe em sua obrigação moral de proteção irrestrita da minoria contra a Tirania da Maioria realiza-se o cenário Filho Perfeito.

Pais não devem ser obrigados a ter filhos indesejados, seja pelo sofrimento próprio ou do filho em potencial, não obstante a opinião contrária da maioria (que não compartilhará daquele sofrimento).

Tampouco é facultado ao Estado permitir e/ou fomentar qualquer tipo de discriminação. A atualidade de John Stuart Mill é clara: "Mas nenhuma pessoa, ou qualquer grupo de pessoas, espera dizer a outra criatura humana, de idade adequada, que ela não deve fazer com sua vida em benefício próprio o que ela escolher... com relação a seus próprios sentimentos e circunstâncias, o homem ou mulher mais ordinário tem meios de conhecimento imensuravelmente superiores aos de qualquer outra pessoa".

Cenário 4 - Clonagem de Embriões: A clonagem de embriões pode ser mais bem discutida se estratificada em clonagem reprodutiva (geração de novo indivíduo a partir do material genético de um único indivíduo) e clonagem terapêutica (obtenção de células embrionárias totipotentes para fins terapêuticos).

Diversas sociedades compartilham o repúdio à clonagem reprodutiva. Será possível minimizar os riscos associados à escolha entre proibição ou permissão? Como, simultaneamente, proteger as liberdades individuais e o bem comum, na forma de um contrato social estável, rejeitar argumentos preconceituosos e não sucumbir ao medo de abrir essa caixa de Pandora?

A solução passa por um contrato social que defina minimamente o ser humano como a capacidade de exercer o livre-arbítrio. Ao Estado cabe proteger tal capacidade --apenas a natureza poderá restringi-la (doença) ou aboli-la (morte). A maior contribuição da natureza ao livre-arbítrio, e portanto ao humano em cada um de nós, é nosso patrimônio genético, cuja composição é determinada pelo "dado não-viciado" da genética mendeliana agindo sobre a herança genética dos nossos pais através da reprodução sexuada --seja in vivo (coito) ou in vitro (reprodução assistida).

Tornar-se-ia irrelevante o argumento verdadeiro de que as características de um indivíduo resultam da interação de genes e ambiente, e que portanto um clone não seria necessariamente idêntico ao indivíduo doador de seu material genético. A clonagem reprodutiva, ao viciar o "dado genético", restringe o livre-arbítrio do indivíduo que porventura nasça, cerceando-lhe um direito para satisfação dos pais. Justifica-se sua proibição.

Um embrião possui apenas o potencial para o livre-arbítrio, de realização incerta, e portanto foge da definição do ser humano e da proteção do Estado. Em clínicas de reprodução assistida, embriões inadequados para a transferência ao útero ou excedentes são rotineiramente descartados. A clonagem terapêutica aproxima-se rapidamente do universo real, com o recente sucesso na geração de células embrionárias totipotentes de um embrião humano clonado por transferência de núcleo, obtido por cientistas coreanos.

Longe de ser uma panacéia, o potencial terapêutico de células totipotentes é crível e merece ser investigado, particularmente para doenças degenerativas e transplantes de órgãos. O Estado perderia legitimidade numa eventual proibição da clonagem terapêutica ou da obtenção de células totipotentes de embriões humanos para fins terapêuticos. É inconsistente bloquear o possível desenvolvimento de novas terapias, redutoras de sofrimento humano real, para proteger embriões que tanto pais potenciais quanto o Estado reconhecem como passíveis de serem descartados.

Cenário 5 - Reprodução Assistida e Doação de Órgãos: garota de três anos sofre de anemia de Fanconi, cuja terapia demanda transplante de medula óssea. Na ausência de doadores geneticamente compatíveis, pais e médicos associam reprodução assistida a teste genético na esperança de novo filho saudável e possível doador. Embriões obtidos por fertilização in vitro são submetidos a teste genético, selecionando-se aqueles que não carreguem duas cópias do gene mutante responsável pela anemia de Fanconi e simultaneamente tenham os genes de compatibilidade de transplante similares aos da irmã. Após quatro anos e cinco ciclos de fertilização in vitro, a mãe engravida e dá a luz a uma criança sadia, cujas células do cordão umbilical salvam a irmã.

Potencial roteiro de telenovela, esse cenário realizou-se e foi tornado público recentemente. A criança afetada pela anemia de Fanconi foi salva e permanece sadia dois anos após o transplante, e os pais não apenas salvaram a filha como conquistaram mais um filho sadio. A estratégia foi tentada em dois outros casos, sem sucesso.

Esses cenários evidenciam as dificuldades em delimitar o universo ético de uma sociedade que se queira democrática. Abandonado o fetiche da "ética absoluta", resta à sociedade, profissionais de saúde inclusive, debater, ponderar e construir novo código de ética médica e legislação federal em sintonia com os novos tempos --que preserve os interesses do cidadão, inclusive aqueles doentes, e faça do Estado guardião de suas liberdades individuais contra a tirania da maioria. Que nossa herança hipocrática --"Primum non nocere" (primeiro não causar dano)-- constitua o limite da arte médica por mais um milênio.

Antonio Oliveira-dos-Santos, 35, é médico e doutor em biologia celular e molecular.
 

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