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06/06/2004 - 06h54

Descoberta de proteína pode ajudar em deficiências da memória

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CLAUDIO ANGELO
da Folha de S.Paulo, em Cambridge (EUA)

Os médicos que arrancaram um pedaço do cérebro do adolescente americano Henry M. em 1953 para curá-lo de uma epilepsia devastadora acharam que estavam fazendo um bom negócio. A cirurgia de fato acabou com as convulsões do paciente.

O detalhe que eles ignoraram, no entanto, era que a área do sistema nervoso retirada faria uma imensa falta ao rapaz num aspecto nada banal da vida: a capacidade de formar novas memórias. Hoje H.M., 72, vive no passado. Não se lembra de nada do que aconteceu após a operação. Acha que ainda tem 19 anos. Precisa ser reapresentado aos seus médicos a cada consulta e a cada vez que eles saem da sala por alguns minutos.

Em seu laboratório no MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), EUA, o biólogo japonês Susumu Tonegawa cria pequenos H.M. Seu grupo de pesquisas produz camundongos transgênicos com um defeito no hipocampo, a mesma região do cérebro que foi removida do jovem Henry há mais de 40 anos.

O objetivo dos cientistas liderados por Tonegawa é descobrir o que torna o hipocampo uma área tão especial para a memória e entender como os animais --inclusive o homem-- aprendem e se lembram das coisas. Assim, esperam poder um dia produzir drogas que melhorem a memória, ajudando pacientes com distúrbios de aprendizado. Aos 64, o próprio Tonegawa admite não ter uma memória exatamente afiada. "Meus filhos dizem que é a idade", brinca. A resposta às provocações familiares é algo na linha: "Mas eu ganhei um Nobel, vocês não".

O cientista recebeu sozinho o Prêmio Nobel em Medicina ou Fisiologia de 1987 por ter demonstrado o mecanismo genético da diversidade dos anticorpos, ou seja, como as células do sistema imunológico conseguem produzir uma quantidade imensa de moléculas de defesa com uma quantidade mínima de genes. Desde então, ele se dedica a aplicar técnicas de biologia molecular e genética ao estudo do cérebro. "Eu não sentia que tinha talento ou recursos para fazer melhor que outros bons imunologistas", diz.

No começo deste ano, o grupo de Tonegawa esbarrou no que parece ser a chave para a consolidação das memórias. E "chave", aqui, não é figura de linguagem: eles encontraram uma proteína que funciona como um disjuntor nas células do cérebro, ativando uma série de reações fundamentais para estabelecer a memória de longo prazo. A tal proteína, conhecida pela sigla MAPK, pertence ao grupo das quinases ("kinases", em inglês, daí o K), uma família famosa de interruptores moleculares.

Seu papel nas células do restante do corpo já era bem estabelecido. "Ela tem sido estudada há algum tempo", disse o biólogo. "Quando uma célula se divide, isso leva à ativação dessa via bioquímica." Mas ninguém tinha a menor idéia do que a MAPK fazia nos circuitos do hipocampo, nem exatamente em que lugar. Num estudo publicado em fevereiro na revista "Cell" (www.cell.com), o cientista do MIT e quatro colaboradores mostraram que a proteína-interruptor é ligada nos neurônios toda vez que memórias de longa duração --aquelas que definem o aprendizado-- se consolidam.

A ativação acontece em um lugar definido da célula nervosa: a vizinhança das sinapses, conexões entre neurônios que são reforçadas quando se forma uma nova memória. Mais especificamente, nos prolongamentos dos neurônios conhecidos como dendritos. "Nós suspeitamos que um sistema que já era conhecido na regulação de corpos celulares poderia se aplicar de uma maneira mais localizada. Quando os dendritos ficam maiores, ou quando você forma novos dendritos, um mecanismo parecido [com a ativação da MAPK] poderia estar operando."

De Nobel para Nobel

Mais fundamental que "onde", no entanto, é "o que" a MAPK liga nos dendritos. E, nesse aspecto, o trabalho de Tonegawa e seus alunos se inspira na descoberta de outro Prêmio Nobel, o austríaco naturalizado americano Eric Kandel, da Universidade Columbia, em Nova York. Kandel foi contemplado em Medicina ou Fisiologia no ano 2000, por ter mostrado que as sinapses são modificadas durante a consolidação de uma memória e que para isso é necessária a síntese de uma série de proteínas.

Elas servem tanto como matéria-prima para reforçar a estrutura da conexão quanto como sinalização extra entre os neurônios conectados. A hipótese do médico Raymond Kelleher, autor principal do estudo na "Cell", era que a MAPK seria a chave-mestra para a síntese de proteínas nas sinapses. Para testar a idéia, o grupo do MIT criou camundongos geneticamente modificados que não produziam MAPK nas células do hipocampo. Os roedores foram submetidos a diversos testes de averiguação de memória. Um deles consistia em tentar encontrar uma plataforma escondida num tanque d'água. Camundongos normais, após algumas sessões de treino, nadavam direto para a plataforma. Os mutantes sempre se comportavam como se estivessem no tanque pela primeira vez.

Em outro teste, camundongos normais e mutantes eram expostos a uma situação de medo condicionado --uma campainha antes de um choque elétrico-- repetida várias vezes a intervalos variáveis. Após uma hora, ambos os grupos ficavam igualmente paralisados ao ouvir a campainha, antecipando o choque. Depois de um dia, só os camundongos normais se lembravam de ter medo.

Problema de longo prazo

Os experimentos com camundongos transgênicos, além de outros com animais normais nos quais a MAPK era bloqueada quimicamente, mostraram que a memória de curto prazo (aquela ativa, por exemplo, quando você decora um número na lista telefônica só até fazer a ligação) não é afetada pela falta da proteína-chave. Mas a memória ligada ao aprendizado, a de longo prazo, praticamente desaparecia. Isso porque os animais deficientes em MAPK não conseguiam fabricar em seus dendritos as proteínas responsáveis pelo reforço das sinapses.

"Esse estudo indica que um número muito grande de proteínas precisa ser ressintetizado [na memória de longo prazo]. Até esse estudo, pensava-se que apenas um número limitado de proteínas novas precisava ser fabricado, mas nós mostramos que esse número é bem grande", afirmou Tonegawa. "Provavelmente se incluem aí receptores, [proteínas do] esqueleto celular, que são os tijolos para novas sinapses, e talvez até proteínas que compõem uma fábrica de novas proteínas."

Segundo o biólogo japonês, essa linha de montagem molecular tem várias implicações interessantes para a formação da memória. Ela pode significar, primeiro, que um composto qualquer capaz de reforçar a MAPK no hipocampo pode ser uma droga eficaz contra distúrbios de aprendizado e perda de memória. No caso do paciente H.M., a esperança de voltar a aprender não existe, porque ele não tem hipocampo. "Os circuitos dessa região do cérebro têm uma arquitetura muito específica", disse. Embora nem todo tipo de memória esteja sediado no hipocampo, os feixes de neurônios nos quais a memória de longo prazo é armazenada podem ser únicos dessa área.

Depois, os resultados indicam que o próprio ato de recordar pode modificar uma informação armazenada. "Se você se lembra de algo, esse ato também requer uma nova síntese de proteínas. A memória sólida volta ao estado instável", diz Tonegawa. A formação de novas memórias, contínua, pode levar a uma modificação de memórias existentes. Sinapses podem ser destruídas para que novas sinapses se formem, embora ainda não esteja claro se isso significa um limite para a capacidade humana de armazenar informação no cérebro. Num segundo trabalho, a ser publicado na revista "Neuron" (www.neuron.org), a equipe do MIT tenta responder se os dendritos sofrem alguma modificação estrutural durante a formação da memória.

Segundo Kelleher, é exatamente essa possível deleção que torna plausível uma eventual terapia de memória para portadores de mal de Alzheimer ou de outra deficiência mnemônica. Afinal, simplesmente estimular as sinapses pode não ser assim tão bom. Eventos traumáticos que qualquer um preferiria esquecer podem virar recordações vívidas. Num cenário extremo, como o imaginado pelo escritor Jorge Luís Borges no conto "Funes, o Memorioso", a capacidade de generalizar, fundamental para a mente, poderia se perder em meio a recordações infinitas de detalhes desimportantes.

"A natureza dos mecanismos que regulam o esquecimento também está ficando clara, e ela também parece envolver síntese de proteínas", afirma o neurologista. "Nossa estratégia para o aprimoramento de memória pode fomentar o maquinário de síntese de proteínas tanto para a formação de memórias de longo prazo quanto para a eliminação de memórias, tornando ambas mais eficientes."

Antes que algum vestibulando se ourice, Kelleher adverte que o objetivo de seu grupo não é produzir uma droga para deixar pessoas normais com uma supermemória. E lembra: "Essas idéias ainda não foram testadas e precisarão de muita experimentação em animais antes de chegarem a testes clínicos em humanos."

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