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19/09/2004 - 17h40

Obra do evolucionista Ernst Mayr aborda a autonomia da biologia

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CLAUDIO ANGELO
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo

O cenário é uma conferência científica na Universidade Harvard sobre as aves-do-paraíso da Nova Guiné. À frente do projetor de slides, o naturalista americano David Attenborough descreve seus esforços heróicos, durante muitos anos, para filmar os raríssimos pássaros, gravemente ameaçados de extinção. Na platéia, um ancião acompanha com interesse a exposição de Attenborough. Depois, ele se vira para o colega ao lado. E cochicha: "Já comi muitos desses".

O ancião é Ernst Mayr, o biólogo centenário de Harvard considerado o maior evolucionista vivo. Ele realizara em 1928 o primeiro levantamento das aves-do-paraíso das montanhas Ciclopes, da Nova Guiné, enfrentando condições de campo arriscadas, malária e guerras entre tribos para apresentar ao mundo os animais, hoje ameaçados --alguns acabaram, por assim dizer, alimentando a ciência de uma forma mais literal.

A história acima, narrada pelo jornalista americano Steve Mirsky na revista "Scientific American", ilustra dois traços marcantes da personalidade de Mayr: seu humor cáustico, de frases curtas e devastadoras, e sua lucidez em lembrar eventos que ele testemunhou bem antes de a maior parte das pessoas sonhar em nascer.

São justamente frases curtas e uma lucidez extrema que formam a receita de "What Makes Biology Unique? - Considerations on the Autonomy of a Scientific Discipline" (O Que Torna a Biologia Especial? - Considerações sobre a Autonomia de uma Disciplina Científica), o vigésimo quinto livro de Mayr em seus 80 anos de carreira, lançado no mês passado nos Estados Unidos e ainda sem previsão de tradução no Brasil.

No livro, uma coleção de ensaios publicada após o centenário do autor (em julho) e chamada pelo também biólogo e divulgador de ciência Jared Diamond de "o primeiro do segundo século de sua longa carreira", Mayr resume: "Esta será a minha última análise de conceitos controversos em biologia". Não que ele ache que esta será sua última obra: Ernst, como é chamado pelos colegas cientistas, já prepara mais um livro. Por "última análise" entenda-se mais "palavra final". E quem ousar discordar que escale a torre acadêmica construída desde os anos 1920 por dezenas de publicações, entre elas o clássico "Sistemática e Origem das Espécies", de 1942, uma das obras que marcaram a chamada Moderna Síntese --que deu à teoria da evolução de Charles Darwin (1809-1882) sua roupagem atual. Viver mais do que todo mundo e produzir mais do que todo mundo têm suas vantagens, como Mayr faz questão de deixar claro em um dos ensaios do livro, sobre o problema da origem e definição de espécie para os evolucionistas: "Eu presumivelmente sou qualificado para lidar com esse tema, tendo discutido o problema das espécies em 64 livros e artigos científicos publicados entre 1927 e 2000. Também precisei tomar decisões sobre o status de espécie ao descrever 26 novas espécies e 473 subespécies de ave (...) Portanto, não deveria haver dúvida sobre as minhas qualificações como um sistemata prático". Apesar de tanta arrogância --e talvez justamente por causa dela--, "What Makes Biology Unique?" é um presente para qualquer pessoa, cientista ou leiga, que se interesse pela ciência da vida. Mayr, nascido na Alemanha, aproveita o livro para fazer o que os alemães fazem de melhor: filosofar. Ele percorre uma lista extensa, que vai da teleologia de Aristóteles a Kant, do vitalismo de Henri Bergson e Hans Driesch à noção de "falseabilidade" de idéias científicas de Karl Popper e às revoluções de Thomas Kuhn, para responder à questão proposta no título.

Fora do átomo

Em resumo, o argumento de Mayr é que a biologia não pode ser explicada pelo reducionismo das ciências físicas. Todas as tentativas de circunscrever o mundo vivo às leis naturais newtonianas e descrevê-lo matematicamente falharam. Isso porque organismos possuem o que os biólogos chamam de "propriedades emergentes", algo que alguns biólogos moleculares ainda se recusam a enxergar no século do gene. A estrutura químico-física do DNA ou até mesmo o arranjo das seqüências no genoma não bastam para explicar o fenótipo (conjunto de características externas) de um indivíduo --que, afinal, é o principal objeto sobre o qual a seleção natural atua--, da mesma forma que a estrutura separada dos gases hidrogênio e oxigênio não basta para explicar o fato de a combinação desses gases ser um líquido, como observou o naturalista Thomas Henry Huxley ainda no século 19. Para Mayr, a biologia, nascida de uma série de idéias sobre o mundo vivo propostas entre 1730 e 1930, se tornou uma ciência autônoma ao rejeitar o fisicalismo (embora esse fantasma tenha voltado para puxar o pé dos biólogos "clássicos" após a revolução molecular iniciada por James Watson e Francis Crick com a descoberta da estrutura do DNA, em 1953), a teleologia e o vitalismo. Os dois últimos conceitos só seriam plenamente derrotados, ao menos na cabeça dos cientistas, depois da aceitação do paradigma darwinista na década de 1940. O vitalismo, defendido por Bergson e outros, propunha que as manifestações da vida nos organismos eram controladas por uma força oculta ("vis vitalis"), assim como o movimento dos planetas era regido pela mão invisível da gravitação. Já a teleologia, idéia segundo a qual o Universo tem um propósito definido, é reconhecida como a idéia mais influente da biologia antes de Darwin demonstrar que a evolução não segue um propósito. O pensamento teleológico, hoje representado principalmente por proponentes do chamado "design inteligente", não tem mais espaço na ciência.

Darwin e Kuhn

Dois dos ensaios do livro se dedicam a Darwin, o herói pessoal de Mayr. O biólogo defende que nenhuma obra científica teve mais influência na vida das pessoas comuns que "A Origem das Espécies", na qual o naturalista britânico enuncia sua teoria da evolução pela seleção natural. Darwin moldou o pensamento moderno ao retirar a religião da esfera da ciência, propondo que o mundo evolui em vez de se manter estático, como uma criação divina perfeita. Também deu um golpe no orgulho humano ao propor que todos os seres vivos descendem de um único ancestral.

Mayr, que afirmara em 2001 que a teoria da evolução deveria ser chamada de "fato, não de simples teoria", também defende que o modelo darwinista se compõe de cinco teorias independentes --evolução, ancestralidade comum, seleção natural, especiação populacional e gradualismo. Uma evidência disso, argumenta, é o fato de que vários darwinistas --como T. H. Huxley-- rejeitavam a seleção natural. O corpo teórico evolucionista ficaria pronto mesmo com a Moderna Síntese, na década de 1940. É por isso que a biologia evolutiva não pode ser classificada como uma "revolução científica" da maneira proposta pelo físico Thomas Kuhn no clássico "A Estrutura das Revoluções Científicas", de 1962. Não há um período de salto seguido pela produção de "ciência normal" com a evolução.

No ensaio que encerra o livro, Mayr se volta contra o Seti (programa de busca por inteligência extraterrestre), uma de suas vítimas preferenciais. Ele afirma que a possibilidade de vida inteligente pronta para fazer contato com a Terra é remota demais para que alguém ainda gaste dinheiro com isso. Esse pessimismo já lhe rendeu um arranca-rabo histórico com o astrônomo americano Frank Drake, o "pai" do Seti, e uma briga com o também biólogo de Harvard Edward O. Wilson. Em uma entrevista recente ao discípulo Frank Sulloway, Mayr resumiu as razões de sua rabugice: "Acho que é porque eu nasci na Alemanha, onde tudo sempre dá errado".

What Makes Biology Unique? Considerations on the Autonomy of a Scientific Discipline
240 págs. US$ 30,00
Ernst Mayr. Cambridge University Press


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