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10/02/2005
-
09h27
REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de S.Paulo
Entre os estudiosos de animais extintos, há um ditado que diz que só os corpos se fossilizam, e não o comportamento dos bichos. Pesquisadores da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) quebraram essa escrita ao descobrir marcas de luta por poder e fêmeas na cauda de um crocodilo que viveu no Brasil há 80 milhões de anos.
O réptil em questão atende pelo nome científico Baurusuchus pachecoi e habitava uma região semidesértica no que hoje é o município de Jales (noroeste do Estado de São Paulo). Além da sorte de ter podido inferir o comportamento de uma espécie fóssil, o paleontólogo Leonardo Avilla, que analisou o bicho, também é o primeiro a estudar seu rabo --antes disso, só se conhecia o crânio do paleojacaré.
"As puncturas [buracos arredondados] na cauda são exatamente iguais às que seriam produzidas pelos dentes da mesma espécie", explica o pesquisador. Para Avilla, é um sinal claro de que os répteis se envolviam em combates ritualizados na disputa por territórios ou parceiras --exatamente como fazem seus parentes hoje.
Jacaré da terra
As semelhanças, no entanto, param por aí. "Ao contrário das espécies de crocodilo vivas hoje, o B. pachecoi era muito mais terrestre", explica Avilla.
"Isso é indicado por características como as narinas na frente do crânio e os olhos dispostos lateralmente [nos crocodilos e jacarés de hoje, tanto as narinas quanto os olhos estão no alto da cabeça, para facilitar o nado]."
A criatura, com cerca de 3 m de comprimento, era parte de um verdadeiro zoológico crocodiliano que existia durante a era dos dinossauros, incluindo até animais herbívoros. Por outro lado, todos os membros atuais do grupo são comedores de carne.
Os paleontólogos imaginam que a criatura era bastante ágil em terra firme, outra diferença marcante em relação a seus parentes distantes modernos. Mas isso não significa que ele perseguisse ativamente suas presas, como fazem, por exemplo, leões ou onças.
"Ele era um predador do tipo que a gente costuma chamar de senta-e-espera", explica o pesquisador da UFRJ. Como o bicho não conseguia controlar a temperatura do próprio corpo (assim como todos os répteis vivos hoje), precisava poupar energia e ficar na tocaia, só atacando quando o sucesso fosse praticamente certo.
A cauda estudada por Avilla, com uns 50 cm e quase completa, veio de uma visita à chamada formação Adamantina, no interior de São Paulo, coordenada por Lilian Paglarelli Bergqvist, orientadora de doutorado do paleontólogo.
Além do rabo, os pesquisadores também conseguiram encontrar dentes e fragmentos de crânio, que tornam segura a relação da cauda com o crânio já conhecido da espécie. O fóssil também tinha preservado os osteodermas, calombos ósseos que dão o aspecto de armadura à pele dos bichos.
O detalhe é que os osteodermas, quando examinados de perto, estavam lotados de puncturas, rachaduras e arranhões. Como os dentes desses crocodilos e os de dinossauros carnívoros, que também viviam por ali na época, são parecidos, à primeira vista seria difícil apontar o culpado, diz Avilla.
"Mas, olhando de fora para dentro da boca, você percebe que os dentes de dinossauros são achatados, enquanto os de crocodilos são bastante arredondados", explica o pesquisador.
Mordida crônica
A medição do diâmetro e da profundidade das marcas mostrou que as mordidas tinham sido mesmo dadas por membros da mesma espécie. E mais: os osteodermas apresentavam diferentes graus de cicatrização, como se o pobre B. pachecoi estivesse levando mordida ali a vida inteira.
Foi aí que entrou a comparação com crocodilos e jacarés de hoje. "A gente conversou com especialistas de zoológicos no Rio e em São Paulo, e descobriu que essas brigas em que há mordidas na cauda são muito comuns", diz o paleontólogo. Os bichos abocanham o rabo uns dos outros para marcar seu território ou para disputar fêmeas.
Mas o interessante é que, apesar dos ferimentos, esses combates são principalmente uma forma de "display" --na gíria dos biólogos, é só um jeito (relativamente) não-sangrento de mostrar quem manda.
"É como quem diz "não vem para cá que eu sou mais forte'", afirma Avilla. Tanto é assim que a região da cauda está bem protegida pelos osteodermas e dificilmente ficaria ferida para valer.
O pesquisador especula que esse comportamento se exacerbasse em condições de estresse, como as secas que afetavam o interior paulista há 80 milhões de anos.
O B. pachecoi e seus parentes mais próximos desapareceram da Terra junto com os dinossauros, há 65 milhões de anos, mas os achados dos pesquisadores mostram que, pelo menos em certos detalhes de comportamento, os crocodilos e jacarés de hoje são muito parecidos com eles. "Nos últimos anos, a paleontologia está usando a biologia para prestar atenção nesses sinais mais sutis e testar comportamentos", avalia.
O trabalho de Avilla e de seus colegas Daniela Ramos e Ronaldo Fernandes (também orientador do doutorando) está na edição de dezembro da revista científica "Journal of Vertebrate Paleontology".
Brasil
É difícil dar atenção a qualquer outro bicho fóssil numa época em que os dinossauros ainda eram os reis da Terra, mas o fato é que, durante o Mesozóico (de 245 milhões a 65 milhões de anos atrás), os parentes e ancestrais dos crocodilos alcançaram grande diversidade de formas.
"É uma coisa que você não encontra depois da extinção dos dinossauros. A partir daí, só os Eusuchia [os representantes atuais do grupo, que são semi-aquáticos] sobrevivem. E o Brasil tem uma diversidade imensa dessas formas mais primitivas", diz Avilla.
O Baurusuchus pachecoi, por exemplo, é um dos representantes dos baurussuquídeos, que também são encontrados na Argentina e, por incrível que pareça, no longínquo Paquistão.
Muito antes deles, no Período Triássico (de 245 milhões a 208 milhões de anos atrás), o Rio Grande do Sul era aterrorizado pelo Prestosuchus, um corredor de 5 m de comprimento.
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da Folha de S.Paulo
Entre os estudiosos de animais extintos, há um ditado que diz que só os corpos se fossilizam, e não o comportamento dos bichos. Pesquisadores da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) quebraram essa escrita ao descobrir marcas de luta por poder e fêmeas na cauda de um crocodilo que viveu no Brasil há 80 milhões de anos.
O réptil em questão atende pelo nome científico Baurusuchus pachecoi e habitava uma região semidesértica no que hoje é o município de Jales (noroeste do Estado de São Paulo). Além da sorte de ter podido inferir o comportamento de uma espécie fóssil, o paleontólogo Leonardo Avilla, que analisou o bicho, também é o primeiro a estudar seu rabo --antes disso, só se conhecia o crânio do paleojacaré.
"As puncturas [buracos arredondados] na cauda são exatamente iguais às que seriam produzidas pelos dentes da mesma espécie", explica o pesquisador. Para Avilla, é um sinal claro de que os répteis se envolviam em combates ritualizados na disputa por territórios ou parceiras --exatamente como fazem seus parentes hoje.
Jacaré da terra
As semelhanças, no entanto, param por aí. "Ao contrário das espécies de crocodilo vivas hoje, o B. pachecoi era muito mais terrestre", explica Avilla.
"Isso é indicado por características como as narinas na frente do crânio e os olhos dispostos lateralmente [nos crocodilos e jacarés de hoje, tanto as narinas quanto os olhos estão no alto da cabeça, para facilitar o nado]."
A criatura, com cerca de 3 m de comprimento, era parte de um verdadeiro zoológico crocodiliano que existia durante a era dos dinossauros, incluindo até animais herbívoros. Por outro lado, todos os membros atuais do grupo são comedores de carne.
Os paleontólogos imaginam que a criatura era bastante ágil em terra firme, outra diferença marcante em relação a seus parentes distantes modernos. Mas isso não significa que ele perseguisse ativamente suas presas, como fazem, por exemplo, leões ou onças.
"Ele era um predador do tipo que a gente costuma chamar de senta-e-espera", explica o pesquisador da UFRJ. Como o bicho não conseguia controlar a temperatura do próprio corpo (assim como todos os répteis vivos hoje), precisava poupar energia e ficar na tocaia, só atacando quando o sucesso fosse praticamente certo.
A cauda estudada por Avilla, com uns 50 cm e quase completa, veio de uma visita à chamada formação Adamantina, no interior de São Paulo, coordenada por Lilian Paglarelli Bergqvist, orientadora de doutorado do paleontólogo.
Além do rabo, os pesquisadores também conseguiram encontrar dentes e fragmentos de crânio, que tornam segura a relação da cauda com o crânio já conhecido da espécie. O fóssil também tinha preservado os osteodermas, calombos ósseos que dão o aspecto de armadura à pele dos bichos.
O detalhe é que os osteodermas, quando examinados de perto, estavam lotados de puncturas, rachaduras e arranhões. Como os dentes desses crocodilos e os de dinossauros carnívoros, que também viviam por ali na época, são parecidos, à primeira vista seria difícil apontar o culpado, diz Avilla.
"Mas, olhando de fora para dentro da boca, você percebe que os dentes de dinossauros são achatados, enquanto os de crocodilos são bastante arredondados", explica o pesquisador.
Mordida crônica
A medição do diâmetro e da profundidade das marcas mostrou que as mordidas tinham sido mesmo dadas por membros da mesma espécie. E mais: os osteodermas apresentavam diferentes graus de cicatrização, como se o pobre B. pachecoi estivesse levando mordida ali a vida inteira.
Foi aí que entrou a comparação com crocodilos e jacarés de hoje. "A gente conversou com especialistas de zoológicos no Rio e em São Paulo, e descobriu que essas brigas em que há mordidas na cauda são muito comuns", diz o paleontólogo. Os bichos abocanham o rabo uns dos outros para marcar seu território ou para disputar fêmeas.
Mas o interessante é que, apesar dos ferimentos, esses combates são principalmente uma forma de "display" --na gíria dos biólogos, é só um jeito (relativamente) não-sangrento de mostrar quem manda.
"É como quem diz "não vem para cá que eu sou mais forte'", afirma Avilla. Tanto é assim que a região da cauda está bem protegida pelos osteodermas e dificilmente ficaria ferida para valer.
O pesquisador especula que esse comportamento se exacerbasse em condições de estresse, como as secas que afetavam o interior paulista há 80 milhões de anos.
O B. pachecoi e seus parentes mais próximos desapareceram da Terra junto com os dinossauros, há 65 milhões de anos, mas os achados dos pesquisadores mostram que, pelo menos em certos detalhes de comportamento, os crocodilos e jacarés de hoje são muito parecidos com eles. "Nos últimos anos, a paleontologia está usando a biologia para prestar atenção nesses sinais mais sutis e testar comportamentos", avalia.
O trabalho de Avilla e de seus colegas Daniela Ramos e Ronaldo Fernandes (também orientador do doutorando) está na edição de dezembro da revista científica "Journal of Vertebrate Paleontology".
Brasil
É difícil dar atenção a qualquer outro bicho fóssil numa época em que os dinossauros ainda eram os reis da Terra, mas o fato é que, durante o Mesozóico (de 245 milhões a 65 milhões de anos atrás), os parentes e ancestrais dos crocodilos alcançaram grande diversidade de formas.
"É uma coisa que você não encontra depois da extinção dos dinossauros. A partir daí, só os Eusuchia [os representantes atuais do grupo, que são semi-aquáticos] sobrevivem. E o Brasil tem uma diversidade imensa dessas formas mais primitivas", diz Avilla.
O Baurusuchus pachecoi, por exemplo, é um dos representantes dos baurussuquídeos, que também são encontrados na Argentina e, por incrível que pareça, no longínquo Paquistão.
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