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07/01/2001 - 15h54

Larvas em cadáveres ajudam a decifrar assassinatos

CHRISTOPHER KEMP
da "Salon"

Numa quieta manhã havaiana, o telefone toca, cortando o silêncio. Um corpo foi encontrado no meio de um canavial. M. Lee Goff se apronta, junta seu material de trabalho e toca para a cena do crime, para coletar larvas, besouros e outros insetos do cadáver em decomposição. Os movimentos de Goff são ensaiados, como num ritual. Suas mãos são rápidas. Ele já fez isso várias vezes.

Goff é um entomologista forense na Universidade do Havaí em Manoa, na ilha de Oahu. Ele usa insetos para ajudar a polícia e os médicos legistas a solucionar crimes. Ele é um dos poucos membros do grupo que ele mesmo chama de "Os Dez Sujos", o punhado de entomologistas forenses ativos e que conduzem pesquisas na área. Em seu livro "A Fly for the Prosecution: How Insect Evidence Helps Solve Crimes" (algo como "Uma Mosca como Testemunha: Como Insetos Podem Ajudar a Solucionar Crimes"), publicado recentemente, ele delineia alguns dos métodos e das aplicações de seu inusitado ramo profissional.

O número de entomologistas forenses trabalhando em investigações é reduzido porque os insetos estão envolvidos em um número pequeno de casos, afirma Goff. "Os insetos só aparecem num período limitado do ano", diz. "Em alguns anos eu pego 10 ou 11 casos. Em outros chego a pegar 20 ou 25", contabiliza. Apesar das variações de um ano a outro, o número médio de casos tem aumentado, à medida que os legistas e a polícia começam a aceitar seus métodos de pesquisa.

Goff ouviu falar de entomologia forense pela primeira vez em 1983, durante um seminário sobre insetos e investigações de assassinato, ao qual assistia como um jovem especialista em ácaros. Intrigado, contatou o legista local e se ofereceu para ajudar toda vez que ouvisse falar de uma morte suspeita envolvendo um corpo em estado adiantado de decomposição.

Quando a floresta tropical úmida oferece outra vítima inchada de assassinato, Goff põe suas botas e entra em campo com sua tralha de coleta de espécimes, esperando encontrar algum significado nos insetos que resolveram habitar o corpo.

Levou muito tempo até que os investigadores convencionais aceitassem a entomologia forense como uma ferramenta útil, diz Goff. "Você é como um espetáculo secundário de circo", afirma. Na condição de "um acadêmico entrando numa cena de crime, você não pensa necessariamente do mesmo jeito (que a polícia)".

Dependendo das espécies coletadas no local e de seus estágios de desenvolvimento, os insetos podem ser usados para inferir várias coisas sobre o corpo após a morte. Mais comumente, a entomologia forense é usada para determinar o intervalo pós-morte, ou o tempo passado entre a morte e a descoberta do corpo. Mas ela também pode dizer se um corpo foi removido após a morte e se houve uso de venenos, drogas ou toxinas. Mais ainda: desde o advento dos testes de DNA, amostras de sangue coletadas do intestino dos insetos na cena do crime têm sido utilizadas para identificar suspeitos de estupro e assassinato.

Goff geralmente encontra diversas espécies de inseto na cena de um crime: moscas varejeiras, moscas comuns, mariposas, vespas, formigas e ácaros. Besouros, aranhas e escorpiões.

As moscas são as primeiras a chegar: atraídas pelo cheiro da decomposição, elas colonizam as partes moles do corpo -como feridas abertas ou ouvidos, boca, nariz e olhos. Depois chegam os insetos sociais, como formigas predadoras e vespas, que esperam até que as larvas das moscas, que lhes servem de banquete, tenham se desenvolvido no cadáver. Outros bichos, como os besouros do gênero Dermestes, esperam para se alimentar da cartilagem e dos tecidos ressecados que sobram depois que a maior parte das outras espécies termina o repasto.

Esse padrão, com diferentes espécies invadindo o corpo em várias levas, é chamado sucessão, um fenômeno previsível o suficiente para ser usado por Goff no estabelecimento do intervalo pós-morte.

O entomologista se lembra de um caso em novembro de 1996, quando o corpo de uma jovem mulher foi encontrado no meio de um canavial na ilha de Kauai. "O corpo estava quase totalmente decomposto, e não sobrou muita evidência física", afirma. Mas, usando amostras de insetos que havia coletado, Goff estimou o intervalo pós-morte entre 34 e 36 dias. "Eles não tinham suspeitos, mas tinham um sujeito que dizia ter dado carona à moça 33 dias antes", diz.

Com base nas informações de Goff, a polícia obteve um mandado de busca e revistou a casa do indivíduo, mas não encontrou nada de suspeito. "Finalmente", afirma Goff, "eles entraram e borrifaram luminol", um composto que brilha quando se liga à hemoglobina, o pigmento que dá a cor vermelha ao sangue. Depois que a polícia borrifou a casa, o contorno do corpo ficou claramente visível no chão do quarto.

Havia traços de sangue em outros quartos também. Eles haviam sido deixados quando o suspeito arrastou o corpo pela casa até o seu carro. "O porta-malas ficou todo iluminado", conta Goff.

Durante o julgamento, o júri levou em conta a evidência entomológica, apesar dos esforços do advogado de defesa em suprimir as descobertas de Goff, questionar a validade do mandado de busca e descontar as evidências do luminol. O suspeito foi declarado culpado pelo assassinato. Como muitos outros, esse caso provavelmente teria sido solucionado com o tempo. "Mas aí é uma questão de quando ele teria sido resolvido", diz Goff.

Uma vez no local, Goff coleta amostras de insetos em cada estágio de desenvolvimento -ovos, larvas, pupas e adultos- e os leva para o laboratório. Lá eles serão identificados, preservados e terão seus ovos chocados. O entomologista incuba amostras de pupas e larvas em condições ideais, para descobrir em quanto tempo os insetos adultos emergem.

O resultado será usado para estimar a hora da morte. Armado com fotografias da cena do crime, dados dos insetos e das condições do tempo, e com estudos sobre decomposição de porcos como referência, o perito calcula o tempo que o corpo leva para atingir o estado de decomposição em que se encontra -o intervalo pós-morte.

Sem os dados sobre a atividade dos insetos produzidos pelos estudos de porcos, o trabalho de Goff dificilmente seria realizável. Com franqueza típica, ele escreve sobre uma antiga investigação: "Já que eu estava tentando simular um homicídio, em um dos meus primeiros estudos eu quis dar um tiro na cabeça de cada porco com um revólver calibre 38". O que ele fez, de fato.

Para copiar a atividade de insetos em corpos de vítimas de afogamento, Goff jogou porcos mortos no mar. Ele também enforcou porcos mortos para imitar suicídio, enrolou-os em cobertores para recriar corpos ocultados e simulou vítimas de incêndios criminosos ensopando suínos em gasolina e acendendo um fósforo.

"É desconcertante coletar larvas em uma extremidade do porco e descobrir uma doninha comendo do outro lado", escreve Goff, lembrando aos leitores que é bom assegurar que o porco em decomposição esteja protegido de outros predadores que não insetos.

Embora a pesquisa de Goff possa soar como uma má notícia para os porcos, os estudos de decomposição fornecem a ele dados preciosos para comparar com evidências entomológicas encontradas em casos criminais. De posse desses dados, o entomologista pode extrapolar um intervalo pós-morte em poucas horas, e ele já testemunhou mais de uma vez no tribunal -apoiando ou rejeitando o álibi do suspeito.

O trabalho de Goff o leva frequentemente à Academia do FBI em Quantico, no Estado da Virgínia, onde ele dá aulas num curso de detecção e descoberta de restos humanos. Mas Goff sempre volta ao Havaí, para conduzir estudos que levam à melhor compreensão do papel dos insetos na decomposição. "Temos mais perguntas a responder agora do que quando eu comecei", diz Goff.

No ambiente tropical de Oahu, Goff encontrou o lugar perfeito para responder a algumas dessas perguntas. Fértil e misteriosa, a floresta é como uma máquina -ela precisa de combustível para funcionar. Esse combustível é a matéria orgânica em decomposição. E os insetos são as ferramentas que permitem que esse combustível chegue ao motor, devolvendo-o ao solo. "O sistema inteiro é muito complexo", diz Goff. "E nós somos parte deles, embora muitas vezes contra a vontade."

Em muitos dos estudos de Goff, os insetos começaram a colonizar os cadáveres em dez minutos. E, em alguns, nem sequer esperaram a morte para começar a refeição. Suas vívidas descrições de vítimas de assassinato como centros de uma atividade frenética dos insetos são uma lembrança de que os seres humanos são apenas animais. Tão disponíveis e irresistíveis quanto um cachorro atropelado para uma mosca varejeira.

Tradução: Claudio Angelo
 

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