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18/02/2001 - 09h00

Conflito de interesses já incomoda governo dos EUA

especial para a Folha

O problema com a indústria de testes é o provável conflito de interesses. Afinal, quanto menos demorar a última etapa, mais depressa o capital investido será remunerado. Quando chega a hora de experimentar uma nova droga em pessoas, a companhia que investiu em seu desenvolvimento está ansiosa por cumprir as exigências do governo dos EUA, país que mais consome remédios.

Abreviar ao máximo esse intervalo significa dinheiro fluindo de volta para o caixa, aproveitamento máximo do tempo de proteção oferecido pela patente e aumento da cotação das ações da empresa.

Como esse segmento do mercado de biomedicina é cada vez mais competitivo, produtos concorrentes disputam clientes com doenças semelhantes. Mostrar a vantagem de uma droga sobre a similar envolve testes clínicos mais sensíveis e com maior número de participantes.

Pagamento por cabeça

Dois tipos principais de prestadoras de serviços recebem dinheiro para fazer esses testes. Há empresas que organizam e gerenciam os testes, como a Quintiles, conhecidas como CROs (de "contract research organizations", organizações de pesquisa por contrato). Outras têm como única especialidade recrutar participantes e são remuneradas ou pela proprietária da droga ou pelas CROs.

Essas organizações têm um único objetivo: rapidez. Desse critério particular de eficiência depende a obtenção ou renovação de contratos para fazer ensaios.

Donna Shalala, que permaneceu à frente do Departamento de Saúde dos EUA durante os oito anos do governo Clinton, decidiu enrijecer a supervisão sobre o recrutamento para testes. Shalala encomendou um relatório a um de seus órgãos de assessoramento, "Recrutando Pacientes: Pressões sobre a Pesquisa Clínica" (www.hhs.gov/oig/oei/reports/a458.pdf), lançado um ano atrás.

Em 14 de setembro, Shalala publicou o artigo "Protegendo Participantes de Pesquisas Clinicas" na revista "The New England Journal of Medicine" (www.nejm.com). Ela qualifica como "perturbadora" a forma de recrutamento.

O relatório, no capítulo dos resultados, afirma: "Patrocinadores oferecem incentivos, financeiros e não-financeiros, para encorajar o rápido alistamento e/ou para recompensar aqueles que recrutam certo número de participantes".

Remunera-se por cabeça, o que estimularia a fraude. Quando o número de participantes está perto de ser atingido, a "dona" da droga oferece um bônus para estimular o cumprimento da meta. Num caso citado no relatório, ofereceram-se US$ 6 mil de bônus por pessoa recrutada para a fase 1.

Incentivos podem também ser não-financeiros. É comum que o contrato assegure ao pesquisador que consegue recrutar mais pacientes uma posição de visibilidade na lista de autores do artigo científico resultante do teste.

Tais incentivos conspiram contra o direito fundamental de quem participa de um teste clínico de ser minuciosamente informado sobre objetivos, métodos e riscos do experimento, por meio do chamado "consentimento com conhecimento". Convencer pessoas a participar significa manter-se no negócio.

Médico e paciente

Em agosto passado, o Departamento de Saúde dos EUA promoveu um encontro para discutir os conflitos de interesses nos testes. Entre os debatedores estava Thomas Bodenheimer, professor de medicina comunitária e de família da Universidade da Califórnia.

Sua fala, disponível na Internet (http://ohrp.osophs.dhhs.gov/coi/815.htm#Bodenheimer), revela a preocupação do médico que atende em consultório privado. Ele nunca conduz um teste clínico, mas toma muitas decisões baseadas em seus resultados.

Preocupa Bodenheimer, justamente, o efeito dessa sistemática sobre os resultados, abrindo espaço para o que chama de "má conduta científica". Em maio passado, ele publicou um artigo na "The New England Journal of Medicine". O título era "Aliança Desconfortável: Investigadores Clínicos e Indústria Farmacêutica".

Bodenheimer entrevistou 39 participantes de todas as fases do processo: executivos da indústria, pesquisadores na coordenação de testes, membros dos comitês de ética das universidades, médicos proprietários de CROs e dois médicos especialistas em escrever artigos com resultados de testes.

Um dos artigos mencionados por ele verificou que só 5% dos estudos sobre drogas para o câncer patrocinados por fabricantes de drogas em teste mostraram conclusão desfavorável a elas. Em estudos não financiados pela indústria, 38% foram desfavoráveis.

Bodenheimer afirma que há casos em que o desenho da experimentação favorece, de saída, a droga em estudo. "Se uma nova droga é comparada com uma dose insuficiente de um produto concorrente, parecerá mais eficaz", exemplifica.

"Rochon e colaboradores concluíram que testes com antiinflamatórios não-esteróides sempre mostraram ser o produto da companhia patrocinadora superior ou igual ao produto comparado; em 48% dos testes, a dose da droga em teste era maior do que a dose da droga comparada."

Em 1996, a pesquisadora canadense Nancy Olivieri e seus colegas descobriram que a deferiprone, usada para tratar talassemia, podia agravar a fibrose hepática dos pacientes. Apotex, a companhia patrocinadora, ameaçou processar Olivieri caso ela publicasse os resultados. O contrato entre ambos proibia por três anos a divulgação dos dados sem o consentimento da companhia.

É prática usual o artigo com a análise dos resultados ser escrito dentro da empresa interessada. Entre os pesquisadores que conduziram os testes, circula só um rascunho para avaliação.

O mais preocupante dos efeitos da lógica comercial dos testes com seres humanos parece minar a delicada relação entre médico e cliente. A lista de pacientes de cada clínico norte-americano tornou-se, agora, uma fonte potencial de ganhos. Em 1990, segundo o relatório "Recrutando Pacientes", eram 3.513 os médicos envolvidos em testes clínicos. Em 1995, o número já subira para 11.588.

Procuram-se testes

Espantados, investigadores do Departamento de Saúde reproduziram no relatório um anúncio na Internet sob o título "Procuram-se testes": "Somos um grande consultório familiar com quatro médicos e três assistentes. Dispomos de uma base de dados computadorizada com 40 mil pacientes. Estamos procurando testes em fase 3 e fase 4. Podemos recrutar pacientes para qualquer estudo conduzido em consultório".

Em maio de 1999 , os repórteres Kurt Eichenwald e Gina Kolata publicaram no jornal "The New York Times" trechos de carta de um laboratório farmacêutico dirigida a um centro que testava um medicamento para hipertensão.

A carta reconhecia a dificuldade de recrutar pacientes para o teste em questão e oferecia um "estímulo" extra, nas palavras do jornal. Até ali, a empresa estava pagando US$ 2.955 por paciente engajado no teste. Quem conseguisse completar o quadro de participantes até o dia estabelecido receberia um prêmio de US$ 2.000.

Pacientes, observam todos os documentos sobre o assunto, confiam em seus médicos, não se sentem confortáveis ao desagradá-los. Instado a participar de um teste, talvez sem jamais imaginar que o médico esteja ganhando para isso, o paciente tende a aceitar, o que é classificado como abuso.

Há outra forma de engajamento de pessoal médico na indústria dos testes: a indicação de voluntários. Um valor típico do mercado, diz o relatório, é de 75 dólares por paciente adequado apontado. O que vai de roldão, aqui, é o sigilo: a ficha médica é oferecida a um terceiro sem a ciência do paciente.

Mea-culpa dos EUA

O interesse do governo norte-americano, no entanto, também é uma espécie de mea-culpa. Moldado para fiscalizar e supervisionar testes clínicos conduzidos dentro da academia, o sistema de acompanhamento de experimentação com seres humanos, que inclui a FDA (agência de fármacos e alimentos) e os Institutos Nacionais de Saúde (NIH), mostrou recentemente sua ineficiência.

Foram dois episódios nos últimos dois anos. Primeiro, o de um médico recrutador da Califórnia que durante anos fraudou o sistema. O outro foi o do jovem Jesse Gelsinger, que morreu após terapia genética a que foi submetido na Universidade da Pensilvânia.

Bill Clinton anunciou pessoalmente sua decisão de pedir ao Congresso leis que permitam aumentar as multas para instituições e pesquisadores que firam o consentimento com conhecimento e outras regras. Sugeriu multas de até US$ 1 milhão, para instituições, e de até US$ 250 mil, para pesquisadores. Por enquanto, a administração George W. Bush ainda não se manifestou sobre o assunto.

(ERNEY PLESSMANN DE CAMARGO/MÔNICA TEIXEIRA)
 

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