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25/02/2001 - 03h58

DNA reacende falsa esperança da explicação da essência humana

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ALEX MAURON

O sequenciamento de genomas de organismos tão diversos quanto bactérias, leveduras, vermes, moscas e, claro, nós mesmos levou a biologia do estudo dos genes individuais para o de todos os genes, tornando o genoma um objeto explícito de investigação e representação. Com a publicação da sequência completa do genoma humano, frequentemente visto como um passo prometéico no autoconhecimento, os efeitos sociais e culturais da genômica estão cada vez mais na linha de frente da atenção pública.

A sequência do genoma humano tornou-se central para os debates éticos e de políticas públicas, no que diz respeito à aplicação da transformação genética para a biomedicina e para a biotecnologia. Além disso, está também dando forma a idéias contemporâneas sobre como os nossos genes prescrevem a nossa humanidade. Acadêmicos têm discutido o apelo poderoso da metáfora bíblica na descrição de como o genoma é visto na cultura popular. O genoma humano tem sido rotulado como o "Livro do Homem" e sua decodificação, comparada à busca pelo Santo Graal.

Com a sequência completa do genoma humano agora disponível, a noção de que nosso genoma é sinônimo de nossa humanidade está ganhando força.

Essa visão é uma espécie de "genômica metafísica": o genoma figura como o núcleo de nossa natureza, determinando tanto a individualidade quanto a identidade da espécie. De acordo com essa visão, o genoma surge como a verdadeira essência da natureza humana, sendo as influências externas consideradas eventos acidentais.

A noção de que o genoma contém o plano-mestre da natureza humana é aparentada com um importante ponto de vista na metafísica ocidental, que interpreta todos os organismos vivos como portadores de "almas", as quais determinam seus traços característicos. Sob esse ângulo, a alma humana é tida como uma espécie de cápsula da essência humana.

Princípio organizador Essa convergência de idéias talvez não seja tão surpreendente. Max Delbrück, um pioneiro da biologia molecular no século 20, notou que a noção de programa genético (tomada por biólogos moleculares de empréstimo às ciências da computação em voga) tem um parentesco incômodo com o conceito aristotélico de "eidos", o princípio organizador inerente a cada ser vivo.

Aristóteles e filósofos medievais como São Tomás de Aquino viam o conceito de "eidos" como estreitamente conectado com a noção de uma "forma" ou alma, tida como algo capaz de configurar a matéria na forma reconhecível como organismo vivo. A "forma" era vista como doadora de características individuais ao organismo e também de uma essência à espécie.

Plantas, assim, eram tidas como portadoras de uma alma vegetativa, animais, de uma alma sensível e humanos, de uma alma intelectual. Esse conceito de forma ainda está presente em debates bioéticos contemporâneos sobre o momento em que um embrião humano adquire a condição de pessoa.

Parte da plausibilidade à primeira vista do genoma como definição de nossa humanidade vem de uma confluência das idéias de natureza, estabilidade, imutabilidade e genes --se um traço está nos genes, nada se poderia fazer a respeito. Essa noção já estava evidente nos anos 60, durante as controvérsias "nature versus nurture" sobre a inteligência humana. Aqueles adeptos da natureza eram céticos quanto aos esforços educacionais especiais dirigidos para os desprivilegiados, porque a baixa inteligência era considerada parte da natureza, isto é, estaria "nos genes" e seria, portanto, imutável.

A rápida sucessão de descobertas e especulações sobre a base genética de doenças mentais, alcoolismo e violência, assim como enigmas tão recorrentes quanto o "gene da homossexualidade", deixaram sua marca na consciência do público. É tido como fato por muitos que o genoma está mais perto da verdadeira natureza e destino de cada um do que outras propriedades individuais, que são adquiridas e, portanto, consideradas mais flexíveis e maleáveis a influências externas.

Direitos do embrião

Uma das questões éticas (des)encaminhadas pela "metafísica genômica" é a de quando um ser humano se torna uma pessoa dotada de direitos humanos básicos. A maioria concordaria em que um bebê recém-nascido tem direitos humanos básicos, enquanto um espermatozóide não tem. Mas quando é que se origina a condição de pessoa? Para muitos daqueles contrários ao aborto, às pesquisas com embriões e coisas similares, a resposta óbvia é que a condição de pessoa surge quando o óvulo é fertilizado.

A conclusão é tentadora à primeira vista, porque é na fertilização que emerge o ovo ou zigoto com um genoma diplóide (cromossomos aos pares), da fusão de dois gametas com genomas separados e distintos. O novo genoma diplóide coincide com o surgimento de um novo organismo individual e contém o programa genético que vai dirigir o desenvolvimento do organismo. Sob essa perspectiva, o genoma pode facilmente ser encarado como o marcador material da condição de pessoa. Além disso, o fato de o novo genoma permanecer (quase) estável durante a vida reforça a intuição de que genoma é sinônimo de identidade pessoal.

Para os defensores da tese zigoto-pessoa, a noção escolástica de "forma" é um dilema. Os escolásticos postulavam uma "animação postergada", ou seja, que o embrião humano não recebe na concepção uma alma racional (isto é, caracteristicamente humana), mas apenas quando está "suficientemente formado" (entre 40 e 90 dias pós-concepção, dependendo do sexo). Alguns tomistas modernos reinterpretaram o termo "forma", assim, em termos genômicos, de modo a torná-lo compatível com a tese zigoto-pessoa (que depende de uma animação imediata): "... a forma não é aparência, ao contrário, a forma define a essência.

Mas a biologia medieval não é mais válida hoje, e agora sabemos que a forma "humana" confere estrutura à "matéria" humana assim que a informação genética (in-forma-ção) necessária para definir um patrimônio genético particular é reunida. A maneira como a palavra "informação" é dissecada nessa citação mostra como o genoma pode ser encarado de modo a oferecer o equivalente moderno adequado à "forma" medieval. Para esse autor, São Tomás de Aquino só estava errado quanto ao "timing" do advento da condição humana, e esse "timing" estava errado porque ele não tinha acesso à ciência correta.

Acaba, portanto, o dilema --o genoma diplóide define a natureza humana, certo? Não exatamente.

O problema é que a identidade pessoal não necessariamente se sobrepõe, de modo exato, à identidade genômica, a identidade estabelecida com a formação de um novo genoma diplóide, com a fertilização. Gêmeos monozigóticos, por exemplo, provêm do mesmo embrião e têm genomas idênticos, mas são inquestionavelmente pessoas distintas. Mesmo partilhando vários traços físicos e psicológicos, têm necessariamente biografias separadas. "Mesmidade-de-pessoa" e "mesmidade-de-genoma" são claramente relações distintas, com sobreposições incompletas.

A relação entre genomas e pessoas parece tornar-se ainda mais complicada com o advento da clonagem, na qual nova descendência é produzida pela reprogramação do genoma de células somáticas de doador adulto. Alguns especialistas em ética adeptos da visão zigoto-pessoa reconheceram esse problema. Outros tentaram resolver o problema redefinindo a formação de gêmeos como um tipo de "partenogênese" (fenômeno no qual a descendência é originada de gametas sem fertilização). Encaram a fertilização como produtora de uma nova pessoa (o zigoto), que ocasionalmente dá origem a uma segunda pessoa por meio da "partenogênese".

Essa interpretação contorcida da formação de gêmeos, no entanto, não ajuda a noção de zigoto-pessoa. Apenas oferece evidência adicional de que, o que quer que dê origem a uma nova pessoa, não é necessariamente sinônimo da generação de um novo genoma.

Porcos humanizados

É evidente que há problemas com a idéia da "metafísica genômica" de que o genoma é o único determinante de nossa individualidade humana. Mas o que dizer da noção de que o genoma nos confere a identidade de espécie? Que essa crença influencia intuições fortemente mantidas sobre o que há de errado com a manipulação genética ficou claro para mim nos debates públicos que precederam o referendo suíço sobre engenharia genética, em 1998.

Em discussões sobre a idéia de projetar animais transgênicos, como porcos, para fornecer órgãos para xenotransplantes em pacientes humanos, com frequência ouvi a pergunta: quantos genes humanos seria preciso introduzir num porco para torná-lo perceptivelmente humano?

Evidentemente, o propósito da transferência genética, neste caso, é mesmo tornar o porco mais "humano", ainda que no sentido muito restrito de remover certas proteínas da superfície de células, tornando o tecido suíno imunologicamente compatível com o humano.

Alex Mauron é biólogo molecular, professor de bioética na Escola Médica da Universidade de Genebra (Suíça) e membro da Comissão Federal Suíça de Ética na Engenharia Genética. publicado originalmente na revista "Science" (Volume 291, número 5.505, 2.fev.2001, págs. 831-832). Copyright ¸ 2001 The American Association for the Advancement of Science
 

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