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14/04/2001 - 09h04

Fumo transgênico economiza sangue no AM

MARCELO LEITE
da Folha de S.Paulo

A Amazônia é mesmo um caixote de surpresas. Se alguém lhe dissesse que em plena Manaus pés de tabaco transgênico produzem reagentes para um teste aperfeiçoado de hepatite C, sua reação provável seria de incredulidade. Afinal, nem em São Paulo existe algo semelhante.

Não existe, com efeito. Mas só esse lado paulista de sua desconfiança encontraria apoio na realidade. Pois a pesquisa da Fundação de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas (Hemoam) é fato e promete reduzir em 75% o descarte de bolsas de sangue naquele Estado da Região Norte.

O mais incrível na história: o projeto foi posto de pé com um investimento de apenas US$ 60 mil (cerca de R$ 130 mil), doados pelo governo do Japão.

Em determinados locais dessa região, até 50% das pessoas já tiveram contato com a hepatite C (provocada por vírus). A memória desse contato, deixada no sangue dos doadores na forma de anticorpos, provocou no ano passado o descarte de 3.200 das 28 mil bolsas coletadas.

Em Estados mais afluentes, como os do Sul e do Sudeste, as formas mais comuns de transmissão da hepatite C são seringas compartilhadas por usuários de drogas e contato sexual. Nos mais pobres e de populações isoladas por grandes distâncias, como os do Norte, é mais frequente o contágio no ambiente doméstico, pelo compartilhamento de utensílios, como copos e talheres.

Ocorre que nem todas aquelas amostras de sangue desprezadas contêm de fato o vírus capaz de transmitir a doença para quem recebe a transfusão.

Isso acontece porque algumas pessoas que entram em contato com o vírus não chegam a desenvolver a hepatite e não se tornam portadores do agente infeccioso pelo resto da vida. Ou seja, seu sangue é em princípio seguro.

Combate ao desperdício
O teste aplicado às bolsas de sangue, hoje, não permite distinguir os dois grupos, pois detecta apenas os anticorpos, a lembrança bioquímica deixada pelo vírus. Foi para combater esse desperdício que a médica gaúcha Dagmar Kiesslich, diretora de Ensino e Pesquisa da Hemoam, iniciou em 1995 uma parceria de pesquisa com Makoto Mayumi, da Escola Médica de Jishi, no Japão.

O contato havia sido estabelecido por Akira Yoshikawa, que participara em Manaus do 3º Encontro Nacional de Doenças Transmissíveis pelo Sangue.
Yoshikawa voltaria depois ao Brasil para treinar técnicos do Hemoam num teste de hemaglutinação empregado em seu país, capaz de indicar a presença do próprio vírus no sangue do doador. Tudo com o objetivo de reduzir o descarte exagerado do Amazonas, hoje de cerca de 13% (contra uma taxa de 5% a 6% em outras regiões do Brasil).

A alma do teste é um reagente, criado a partir de uma proteína do núcleo do vírus. Para multiplicá-lo, os pesquisadores japoneses introduziram o gene com o código correspondente em plantas de tabaco (Nicotiana tabacum), transformando-as no que se chama de biorreator: uma fábrica viva de substâncias de interesse para o homem.

Estufa trancada
Sementes transgênicas importadas do Japão foram germinadas e plantadas numa pequena estufa, uma casinha de vidro sombreado à esquerda do prédio da Hemoam. Hoje há dez pés de tabaco lá dentro, indistinguíveis de plantas normais de fumo.

Seria um estufa normal, a não ser pelo fato de se encontrar em um hemocentro, permanecer sempre trancada e ter um símbolo na porta -três arcos entrelaçados- que só os especialistas reconhecem como indicação de uma área de biossegurança (exigência da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, a CTNBio, órgão federal encarregado de supervisionar todas as pesquisas com organismos geneticamente modificados, os OGMs).

Outras providências de segurança: as plantas não podem florescer, para evitar a disseminação dos transgenes (aqueles que foram artificialmente introduzidos na planta), e todo o lixo retirado da estufa, como galhos e folhas mortas, tem de ser autoclavado (processo de esterilização usado para destruição de substâncias biologicamente ativas). A Hemoam recebeu o primeiro CQB (Certificado de Qualidade em Biossegurança) da Região Norte.

Comitê de Ética
Para obter o reagente, Kiesslich e técnicos esmagam e processam as folhas de tabaco. Mas o teste ainda não entrou na rotina da Hemoam, porque é experimental. Em janeiro foi enviado ao Comitê Nacional de Ética em Pesquisa um projeto para avaliação do teste desenvolvido no Japão. Quando autorizado, o experimento consumiria quatro a cinco meses.

Em seguida, precisaria ser aprovado pelo Ministério da Saúde.

Kiesslich não tem dúvida quanto à segurança do exame, quer dizer, sua capacidade de discriminar sem erro aqueles doadores que, apesar de já terem sido infectados pelo vírus da hepatite C, não representariam um risco de transmissão da doença. "O que não se pegaria com o nosso teste não se pegaria também com os outros", afirma a médica, que se doutorou pela Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto e concluiu pós-doutorado na França.

O teste, criado pela Cruz Vermelha do Japão, não está sendo patenteado no Brasil, informa Dagmar Kiesslich. Ela não se mostra preocupada com o aspecto eventualmente lucrativo da sua pesquisa. "[Isso" aqui é um serviço público. Pelo menos para a área de hemoterapia, não há interesse em vender".
 

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