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03/06/2001 - 09h32

Arqueólogo mineiro defende nova teoria de povoação para a América

CLAUDIO ANGELO
da Folha de S.Paulo

O arqueólogo mineiro Walter Alves Neves não consegue disfarçar um certo sorriso irônico ao ler em voz alta trechos de seu último trabalho científico, apresentado há algumas semanas num congresso de antropologia física nos EUA. "Eles vão ver quem é aberrante", diz.

O artigo, a ser submetido ao crivo da revista científica norte-americana "Science", traz novas análises de crânios encontrados num cemitério pré-histórico da região de Lagoa Santa, Minas Gerais. O "eles" a quem o arqueólogo se refere - com dois ou três termos menos elogiosos -, enquanto caminha entre livros e fragmentos de ossos em seu laboratório, no Instituto de Biociências da USP, é um grupo de pesquisadores americanos que considera absurdas as teorias de Neves sobre a chegada do homem ao continente americano.

Walter Neves e seus colaboradores, como o francês André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais, defendem a hipótese de que os primeiros habitantes do continente teriam tido um tipo físico completamente diferente daquele dos índios atuais. A principal evidência disso é um crânio humano desenterrado em 1975 no sítio de Lapa Vermelha 4, em Lagoa Santa. Batizado de "Luzia", o fóssil foi datado em 11.500 anos -o que o torna o ser humano mais antigo das Américas. As formas do crânio mostram que Luzia não tinha nada das feições mongolóides (asiáticas) dos índios americanos. Ela se parecia muito mais com populações da África e com os aborígenes da Austrália, o que pode significar que o povoamento do continente foi um processo complexo, que envolveu pelo menos quatro ondas migratórias -em vez das três atualmente propostas- e mesmo uma possível competição, vencida pelos asiáticos.

O modelo de Neves foi e ainda é atacado por pesquisadores dos Estados Unidos. As críticas mais pesadas vêm de Tom Dillehay, da Universidade de Kentucky. Para Dillehay, as medidas que aproximam o crânio de Luzia do dos africanos e dos nativos australianos podem até ser precisas, mas ela seria um indivíduo "aberrante", diferente da população à qual pertenceu. Em seu livro "The Settlement of the Americas" (O Povoamento das Américas), publicado nos EUA no ano passado, Dillehay afirma que é "simplesmente especulativo demais derivar padrões hemisféricos [de povoamento" de um único esqueleto, como alguns pesquisadores têm feito".

A agulhada é especialmente doída porque parte de um dos maiores especialistas do mundo em pré-história sul-americana. Foi Dillehay quem escavou o sítio de Monte Verde, no sul do Chile, cujas datações -12.500 anos- ajudaram a derrubar o paradigma da entrada recente do homem nas Américas, até então defendido em bloco pelos arqueólogos dos EUA, que monopolizavam as pesquisas na área. Ao dar o tiro de misericórdia no antigo modelo, Dillehay acabou abrindo caminho para várias explicações alternativas para o povoamento do continente -inclusive a hipótese de Neves.

"Se ele soubesse ler, não ficaria por aí dizendo essas coisas", ataca Neves. Segundo o pesquisador da USP, desde 1989 ele e sua equipe vêm publicando análises que mostram que a semelhança da chamada arquitetura craniana de Luzia com a das populações australo-melanésias não é um fenômeno isolado, mas algo que se repete em vários lugares do continente. "Só de Lagoa Santa temos 62 crânios medidos, 13 deles bem datados. O resultado é o mesmo", afirmou.

O troco O novo artigo, assinado por Neves, Prous e mais dois colaboradores, Max Blum e Joseph Powell (da Universidade do Novo México, EUA), é uma tentativa de enterrar de vez as críticas. Nele, os pesquisadores analisam ossos escavados por Prous nos anos 70 no sítio de Santana do Riacho 1, considerado pelo próprio Dillehay um dos mais promissores da América do Sul -ali podem estar evidências de ocupações muito antigas do continente, com idades superiores a 11 mil anos. Entre 1976 e 1979, Prous desenterrou pelo menos 40 esqueletos no local. Alguns deles datam de 8.000 a 11.000 anos atrás, o que os coloca no mesmo período de Luzia, o chamado Paleoíndio (termo que designa os primeiros americanos). O lugar, em si, é elucidativo, por ser o maior cemitério paleoíndio já escavado cientificamente nas Américas. Um dos grandes mistérios sobre os primeiros povoadores do continente é justamente a ausência de enterramentos que datem do Pleistoceno (a Idade do Gelo, que vai até cerca de 10 mil anos atrás). Da cultura pleistocênica mais conhecida, a Clovis, dos EUA, só sobraram pontas de lança. No restante da América do Norte, os esqueletos da Idade do Gelo são apenas indivíduos isolados, o que fez muitos arqueólogos suporem que os primeiros americanos queimassem seus mortos em vez de enterrá-los.

Em Santana do Riacho os esqueletos estão lá, em grandes quantidades. Os pesquisadores relatam que os enterramentos eram tão frequentes que, muitas vezes, a abertura de uma nova sepultura destruía outras. "Na América do Sul não existe esse mistério em relação aos esqueletos", afirma Walter Neves.

Dos 40 corpos escavados por Prous, 6 puderam ser medidos com algum grau de precisão por Neves, pelo chamado método dos componentes principais. A técnica consiste em analisar estatisticamente 19 variáveis craniométricas (os componentes principais), como largura da face, fossas nasais e órbitas. Um programa de computador, alimentado com essas informações, posiciona os traços do indivíduo em um gráfico, de acordo com as semelhanças com outros grupos populacionais cuja morfologia já foi medida.

Quando inseridos no gráfico, todos os indivíduos de Santana do Riacho 1, datados entre 8.500 e 9.500 anos, foram parar no "cluster" (grupo) ao qual pertencem os zulus, os australianos, os tasmanianos -e Luzia. "Os resultados obtidos mostram inquestionavelmente que a morfologia peculiar de Luzia não está só no Novo Mundo", diz o artigo. "De fato, todos os esqueletos paleoíndios estudados até agora em termos de morfologia craniana indicam que os primeiros sul-americanos não mostram traços de uma ancestralidade mongolóide."

Neves afirma ter mandado o artigo a Dillehay, sem ter obtido resposta. Procurado pela Folha, o arqueólogo americano não comentou a análise dos esqueletos de Santana do Riacho. Em entrevista ao jornal em março deste ano, Dillehay havia afirmado que Luzia era uma questão para os brasileiros resolverem. "Nunca fiz nenhum comentário sobre Luzia e não quero ser citado por isso", afirmou.

Geopolítica científica Por trás da briga de egos, a disputa em torno dos ossos de Lagoa Santa esconde uma questão geopolítica: a aceitação das pesquisas feitas na América do Sul pelos arqueólogos dos Estados Unidos -que, depois de décadas de hegemonia, ainda se sentem "donos" da pesquisa na área. O próprio Dillehay sofreu por anos o ceticismo de seus pares quando propôs, em 1976, que Monte Verde era mais velho que o sítio de Clovis (11.500 anos), até então tido como a primeira evidência de presença humana no continente.

Se ele, um americano, já teve problemas com o "establishment", as coisas se complicam mais ainda para o grupo brasileiro conseguir aceitação da hipótese do homem de Lagoa Santa. A teoria é rechaçada desde os anos 40, quando o arqueólogo francês Paul Rivet, diretor do Museu do Homem de Paris, propôs, sem o uso de nenhuma das ferramentas modernas da antropologia física, que os antigos habitantes daquela região de Minas eram diferentes dos índios atuais. "A morfologia esqueletal parece clara há muito tempo. Se os americanos não querem levar isso em conta é problema deles", disparou André Prous, conterrâneo e seguidor de Rivet.

Neves acredita que seu modelo não tem as falhas do de Rivet. "Ele foi massacrado porque propôs uma migração transpacífica [da Polinésia para a América do Sul" como forma de explicar a semelhança dos crânios de Lagoa Santa com os australo-melanésios", disse. Segundo ele, não há necessidade de evocar travessias oceânicas para explicar a entrada dos paleoíndios "negróides" no continente. A onda migratória que trouxe os parentes de Luzia teria seguido a rota tradicional, a da Beríngia, entre a Sibéria e o Alasca.

No mês que vem, Neves e sua equipe voltarão a Lagoa Santa, para procurar mais cemitérios paleoíndios -desde os anos 70 não se escavam novos esqueletos na região- que fortaleçam ainda mais a hipótese. Ao mesmo tempo, grupos buscam esqueletos pleistocênicos na América do Norte, que possam servir como tira-teima. Mas desses, por enquanto, os sinais ainda são poucos.

 

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