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01/07/2001 - 11h02

Tráfico de fósseis pode ter 1ª condenação

CLAUDIO ANGELO
da Folha de S.Paulo

O paleontólogo Reinaldo José Bertini faz uma cara de desânimo e aponta para os corredores do pequeno museu de geologia da Unesp em Rio Claro, interior paulista. Ali se acumulam, impedindo a passagem, dezenas de caixas de papelão e outras tantas placas de pedra embrulhadas em plástico-bolha. "Este é o material", suspira.

Bertini tem razões para o descontentamento. Dentro das caixas e das folhas de plástico estão cerca de 5.000 fósseis (restos de animais mortos há milhões de anos), de insetos a dinossauros.

Durante os próximos quatro meses, o pesquisador e sua equipe se dedicarão a contar, identificar e periciar os vestígios, um a um. O trabalho poderá resultar na primeira condenação judicial por tráfico de fósseis no país.

O material foi apreendido pela Polícia Federal no último dia 20 na casa da artesã Urânia Gusmão Corradini, que por 25 anos vendeu fósseis na Praça da República, em São Paulo. Ela responde a processo por furto e receptação.

Embora pareça mais um caso de polícia, o processo é considerado exemplar tanto pela PF quanto pela Justiça Federal, pois poderá estabelecer algo que ainda não se sabe no Brasil: se o comércio de material fóssil é ou não crime.

O caso promete, ainda, trazer à tona um assunto tabu da comunidade científica brasileira -a ligação, por vezes estreita demais, entre paleontólogos e comerciantes de animais pré-históricos.

Idas e vindas

Esta é a segunda vez que os fósseis de Urânia Corradini vão parar em Rio Claro. Eles sofreram uma primeira apreensão em julho 1997, mas uma decisão judicial os mandou de volta à casa da artesã poucas semanas depois, pois, para o juiz responsável pelo caso, a apreensão foi arbitrária.

"Não está acabado. Vou lutar até o último momento para recuperar o material", disse a artesã no dia da segunda apreensão.

Não é à toa. O acervo levado à Unesp pelos agentes da PF é de fazer inveja a muitos museus paleontológicos do Brasil. Entre as peças apreendidas estão mais de 20 ossos de dinossauros -ainda não descritos pela ciência-, restos de um pterossauro (réptil voador de 90 milhões de anos) e uma laje contendo oito esqueletos de mesossauros, lagartixas aquáticas de 280 milhões de anos.

"[Essa peça" não tem preço", disse o geólogo Rodrigo Santucci, mestrando em paleontologia pela Unesp. A laje calcária é única no país, pela quantidade de esqueletos. O único bloco semelhante no Brasil, que também pertencia a Corradini, foi exportado.

Tesouros científicos desse tipo são subtraídos do país a rodo pelos traficantes de fósseis. Muitas vezes o material sai do Brasil sem que os paleontólogos ao menos possam examiná-lo. São obrigados a vê-lo em museus do exterior (veja quadro à esq.), ou em publicações científicas internacionais.

Como em todo mercado clandestino, o tamanho do prejuízo acadêmico causado pelo tráfico não pode ser precisado. Segundo Ismar de Souza Carvalho, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), calcula-se que haja mais de 70 mil exemplares de insetos fósseis da chapada do Araripe, no Ceará -o mais importante sítio paleontológico do Brasil-, em coleções de fora do país. No Brasil a estimativa é de 3.000.

"Há um problema científico adicional do tráfico, que é o fato de as referências geológicas do fóssil se perderem", diz Reinaldo Bertini. Ou seja, ao pôr as mãos num espécime contrabandeado, o cientista não poderá jamais saber de onde ele foi coletado e qual é a sua idade exata. E ainda está sujeito a receber uma falsificação.

A questão é que ninguém sabe o quão ilegal é o tráfico. O patrimônio paleontológico, como parte do subsolo, é propriedade da União e, a princípio, está protegido. Mas não existe lei com sanções para a atividade.

Um projeto de lei do senador Lúcio Alcântara (PSDB-CE), que fossiliza no Congresso desde 1996, estabelece pena de até cinco anos de prisão para o comércio.

Perseguição

O advogado de Corradini, Donaldo Ferreira de Moraes, afirma que sua cliente sofre perseguição. Segundo ele, Corradini presta um serviço à comunidade científica, resgatando fósseis que, de outra forma, estariam condenados a virar pó em minas de calcário.

Nessas pedreiras, localizadas no interior de São Paulo, os blocos de rocha são explodidos e moídos para virar cal, usada na agricultura. "Ela salva as peças", afirma. "Vende os fósseis mais comuns e, quando apanha uma peça de importância científica, doa para os pesquisadores", disse.

É uma meia-verdade. A maioria dos fósseis apreendidos pela Polícia Federal com Corradini vem da chapada do Araripe, onde as minas produzem pedras ornamentais. Um nódulo calcário contendo um fóssil pode ser -e é- facilmente identificado pelos trabalhadores das pedreiras.

O caso Corradini também expõe um esqueleto que a comunidade paleontológica brasileira prefere manter bem enterrado: a ligação de pesquisadores com o comércio de fósseis.

Essa união é condenada por parte dos paleontólgos. Ao se aliar ao tráfico como maneira de conseguir material para seus estudos, os cientistas acabam sendo coniventes com o envio de peças ao exterior -que Urânia Corradini admite ter praticado.

Um caso que a própria artesã anexou ao processo foi o do crocodilo Caririsuchus camposi, descrito em 1987 por Alexander Kellner, hoje professor do Museu Nacional do Rio de Janeiro.

Kellner descreveu o animal com base em seis pedaços doados por Corradini. O restante do fóssil foi desviado do país. No trabalho, ele agradece à comerciante por ter permitido que o animal inteiro fosse fotografado antes da "exportação" -que, segundo fontes da comunidade, alcançou um valor próximo a US$ 500 mil.

Procurado pela Folha, o paleontólogo disse a princípio que apenas ouvira falar de Corradini. "Quem é ela, mesmo?"

Questionado sobre o crocodilo, admitiu ter visitado a banca de Corradini nos anos 80, quando era um estudante, e recebido a doação dos pedaços do fóssil. A etiqueta científica manda agradecer ao doador do material.

"Não digo que aprovo nem desaprovo [o comércio"", afirmou Kellner. "Quero ficar longe disso, porque é um problema complexo." Sobre o destino final do Caririsuchus, o cientista disse não ter notícia, nem poder afirmar se foi a própria Urânia Corradini que o tirou do país. "Gostaria muito de saber onde ele está."

O paleontólogo Rafael Gióia Martins Neto, da USP, também afirma ter se beneficiado de doações de Corradini. Chegou a batizar um inseto pré-histórico com o seu nome -o Cratogenites corradinae. "Todo mundo sabia que ela era comerciante de fósseis. Eu não teria acesso a muitas coisas se ela não tivesse doado." Ele nega, no entanto, que tenha comprado material da comerciante.

Martins Neto diz que é a favor da legalização do comércio, como acontece nos Estados Unidos e na Europa. "Seria fonte de renda para museus, por exemplo."

O pesquisador afirma que Corradini está "pagando o pato" e que o comércio ilegal de fósseis continua no Brasil. "Mais grave do que crucificar a Urânia é o American Museum [of Natural History" vir anualmente ao Brasil e levar fósseis do Araripe. Isso não tem controle nenhum."



 

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