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24/03/2002 - 19h49

Século será dominado pela genética

MARCELO LEITE
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo

Todas as pessoas que aguardam ansiosas pela revolução da medicina e pela compreensão da essência da espécie com base no sequenciamento do genoma humano deveriam ler com urgência "O Século do Gene", que a Sociedade Brasileira de Genética e a Editora Crisálida estão lançando no Brasil.

Evelyn Fox Keller, sua autora, põe o grão de sal que faltava na recém-nascida e estridente ciência da genômica. Lendo essas duas centenas de páginas, todos ficarão sabendo que, se o século 20 viu nascer a noção toda-poderosa de gene, o 21 começa com a sua decadência.

Keller, 65, tem o grande mérito de fazer a crítica dos exageros da genética sem pretender com isso estigmatizá-la. É indisfarçável no livro a admiração da antiga cientista -Keller formou-se em física, mas hoje é professora de filosofia e história da ciência no MIT- pelo refinamento experimental da pesquisa genômica, assim como a expectativa de que ela consiga continuar avançando na trilha da descoberta, precisando porém libertar-se do que se transformou numa camisa-de-força: o reducionismo genético.

A verdade é que o feito do sequenciamento do genoma humano, por si só, pouca coisa esclareceu sobre a intimidade bioquímica da espécie. Mal se sabe quantos genes existem, menos ainda como atuam em conjunto.

Se for para insistir na metáfora linguística, coisa que Keller ensina a questionar, quando muito se obteve a cópia de um texto escrito numa língua desconhecida. "No apelo por uma genômica funcional, podemos ler pelo menos um reconhecimento tácito de quão grande é o abismo entre "informação" genética e significado biológico. (...) Pode-se dizer que a genética estrutural nos deu a intuição de que precisávamos para confrontar nossa própria hubris", escreve a pesquisadora feminista.

Nesta entrevista, dada por e-mail, Keller concorda com a opinião corrente entre geneticistas de que a imprensa ajuda a perpetuar a superada visão reducionista do gene -mas deixa claro que os maiores beneficiados pela desinformação são os próprios pesquisadores.

A publicação do rascunho do genoma humano completou um ano. De lá para cá, não houve nenhuma grande conquista da genômica, como descobertas e aplicações que possam beneficiar as pessoas comuns.

Parece que a genômica está perdendo terreno, nas fantasias médicas das pessoas, para as células-tronco e para a clonagem. Certamente, células-tronco e clonagem atraem a atenção do público neste momento, mas as questões que essas técnicas levantam são tão políticas quanto técnicas, e no nível técnico não podem ser dissociadas das tecnologias genéticas.

Craig Venter demitiu-se recentemente do cargo de presidente da Celera, o que foi interpretado como um sinal de que não há tanto dinheiro assim a ser ganho com a genômica, ou não tão rápido. A sra. vê isso como um golpe numa concepção mais mercadológica da genômica e da pesquisa biomédica em geral?

Isso depende em parte do que se entende por genômica. Uma parte pesada da indústria genômica se concentra não tanto no próprio genoma, mas nas sequências dos transcritos já processados [o DNA já cortado e editado".

Podemos estar testemunhando um deslocamento de ênfase nessa indústria, mas acho que a saída de Venter teve a ver com um tipo de política interna local a que o público não tem acesso. De acordo com dados do Levantamento Mundial de Pesquisa Genômica, só nos anos 1998-2000 a pesquisa genômica recebeu no mundo inteiro US$ 3,7 bilhões, ou a média de mais de US$ 1,2 bilhão por ano. Isso quase daria para erradicar a pobreza do Brasil.

Como explicar a relação custo-benefício dessa pesquisa para o público de uma nação em desenvolvimento?

Eu nem tentaria -os benefícios da genômica claramente não podem ser computados para pessoas abaixo da linha de pobreza. Por outro lado, é preciso dizer que a pesquisa genômica não é a culpada, nesse caso, mas antes sintoma da negligência para com as necessidades dos pobres, e o Brasil é um dos países em que essa negligência tem sido das mais agudas.

Foi preciso mais de uma década e bilhões de dólares para completar o rascunho da sequência do genoma, mas a identificação de genes, de polimorfismos singulares de nucleotídeos [ou SNPs, variações individuais entre as mais de 3 bilhões do genoma" e a proteômica parecem esforços ainda maiores.

É correto contar com mais duas décadas e dúzias de bilhões de dólares antes que os frutos médicos da genômica estejam à disposição de todos?

Não, acredito que não. Estudos de regulação gênica, nos mais diferentes níveis, e de interações proteína-proteína avançam tão rapidamente que já estão modificando as perspectivas dos biólogos com incrível rapidez, e acredito que esses estudos logo darão frutos biomédicos, também.

O engano central sobre a genômica parece implicar um deslize do reducionismo aceitável e cientificamente útil para um determinismo genético questionável. Essa não é a visão predominante para a maioria dos geneticistas, mas certamente tem fortes raízes entre não-especialistas e no público em geral.

O inevitável desapontamento que virá não pode terminar prejudicando a pesquisa genômica no longo prazo?

Não há dúvida de que pode, mas, enquanto a visão simplista prevalecer, o público estará mais do que inclinado a apoiar a pesquisa genômica. Essa, suponho, é uma razão para permitir que a visão simplista prevaleça, mesmo quando se sabe que está errada. Ainda há muita confusão em torno de uma coisa tão básica quanto o número de genes no genoma humano.

A sra. concorda com Stephen Jay Gould que os surpreendentemente poucos genes (30 ou 40 mil, segundo estimativas recentes) "aplicaram o golpe mais baixo de nossas vidas contra a convenção do reducionismo e a favor da irredutibilidade da explicação proteômica a propriedades simples de códigos de níveis inferiores"?

Acho que Gould exagera o caso. Embora concorde que essa descoberta traz água para o meu moinho e o de outros, ela não representa um problema para os geneticistas moleculares que vêem o programa para a regulação gênica inteiramente inscrito no genoma, pela simples razão de que um pequeno número de genes expressos [transcritos pela célula" em momentos e lugares diferentes pode dar origem a uma grande variedade de formas orgânicas.

Susan Oyama, da City University of New York, é outra voz que defende uma biologia centrada no desenvolvimento. Recentemente, publicou uma coletânea sobre a chamada Teoria de Sistemas de Desenvolvimento (DST, na abreviação inglesa) para o qual a sra. contribuiu com uma versão muito condensada do livro "O Século do Gene". A sra. acha que os ensaios do volume de fato compõem o núcleo de uma nova abordagem teórica para a biologia?

Sou imensamente simpática aos argumentos apresentados pela DST, mas também acho que a maior parte dos escritos sob esse rótulo não estão suficientemente apoiados em genética experimental para oferecer uma agenda de pesquisa útil. Alguns geneticistas no Brasil responsabilizam a imprensa pela prevalência do reducionismo e do determinismo na imagem pública do genoma, indicando que os jornalistas não entendem bem as miudezas da especialidade.

Seu livro traz uma visão mais balanceada, destacando que cientistas são os que de fato têm interesse em manter viva a chamada "linguagem do gene", por razões experimentais e de marketing.

Mas como a sra. explica a resistência da linguagem do gene entre profissionais de imprensa -é só um produto do atraso inevitável quando se trata de fazer permear a complexidade científica pela cultura geral ou da relutância dos pesquisadores em rebaixar as promessas da atividade que é seu ganha-pão?

Acho que culpar a imprensa é uma forma de se incriminar. É possível que, mesmo que os biólogos tivessem sido mais cuidadosos nas suas apresentações para o público e feito algum esforço para comunicar uma história mais sofisticada, ainda assim os jornalistas optassem pela linha simplista -mas esse teste não foi feito.

Com frequência os biólogos sustentam que a história mais complexa não pode ser transmitida para o público, mas parte de minha motivação ao escrever o livro foi mostrar que pode, sim. É preciso examinar melhor a incapacidade deles de fazê-lo. Acredito que você está certo em apontar para fatores econômicos, mas também acho que há uma questão de reputação -muitos geneticistas parecem sentir que tocar na tecla das complexidades seria como diminuir suas realizações.

A sra. comenta só de passagem que a linguagem do gene foi muito útil quando se tratava de avançar com os programas dos geneticistas e de levantar fundos. Comentadores assinalam que o Projeto Genoma Humano foi embalado para que pudesse ser vendido a legisladores e investidores de risco. A sra. não acha que os cientistas vêm lucrando silenciosamente com essas promessas exageradas de resultados médicos na imprensa não-científica? Eles cumpriram seu dever de rebaixar o tom de exagero?

A resposta da primeira pergunta é, certamente, sim. Da segunda, não. E lembre-se do que notou [James" Watson há tanto tempo: "existe ouro no DNA". A sra. e outros estudiosos têm-se mostrado muito críticos de uma tendência que se poderia chamar de "genomização" da medicina, ou seja, que toda moléstia agora tende a ser definida em termos de causas e predisposições genéticas.

Genes são vistos como fáceis de manipular, selecionar e/ou corrigir. Isso não seria uma inversão completa do que a medicina preventiva costumava ser?

Sim. Também é uma inversão completa do entendimento histórico de natureza e ambiente ["nature and nurture"]. Historicamente, natureza era o que não se podia mudar, e ambiente, o que se podia mudar. Essa inversão começou para valer nos anos 60, e é um tanto surpreendente notar com que rapidez teve lugar. Com o advento [da tecnologia" do DNA recombinante, o que originalmente era apenas um sonho começou a erigir-se em realidade -tornou-se possível manipular o DNA de formas muito concretas.

Obviamente isso está ainda muito longe de sermos capazes de reescrever o "programa genético", mas não se pode esquecer quanta excelência técnica já se alcançou. Mesmo assim, com todos os meios técnicos existentes, permanece a questão dos custos (tanto monetários quanto sociais). Por essa razão, debates sobre natureza e ambiente permanecem fundamentalmente como debates políticos e sociais.

Considere o seguinte cenário de ficção: pais serão capazes em algum ponto do futuro de selecionar embriões produzidos por fertilização in vitro com base na sua constituição genética, descartando aqueles portadores de sequências de DNA desfavoráveis, ou talvez mesmo de modificar DNA que eles e a lei -ou a moda- admitam como "maus" genes.

A sra. teria algo contra, por princípio?

Alguns genes são claramente "maus", como os das desordens genéticas singulares [como fibrose cística e coréia de Huntington", e não vejo problema algum em tentar eliminá-los da população humana. O problema real surge quando nos afastamos desses casos simples e raros e passamos a ter em vista genes que estão envolvidos em diferentes tipos de processos.
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"O Século do Gene"
de Evelyn Fox Keller
Tradução de Nelson Vaz.
Editora Crisálida
208 págs., R$ 22
 

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