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01/09/2002 - 10h18

Artigo: Ciência em Dia

MARCELO LEITE
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo

A reflexão sobre biologia pode ferir de morte um modo de pensar que enxerga propósitos na origem de tudo, dos dentes de siso à homossexualidade, como se a natureza tivesse clarividência sobre cada detalhe de suas obras. Ora, um mundo constituído segundo esse princípio não deveria ter defeitos, e todo mundo sabe que o mundo está cheio deles.

Entre as zilhões de coisas que podem dar errado está a troca de apenas duas letras no parco DNA das mitocôndrias. Essa foi a origem da desgraça para um homem de 28 anos, cuja história veio narrada -naquela prosa anêmica dos cientistas- na edição de 22 de agosto da revista "New England Journal of Medicine" (www.nejm.org). Seria quase ofensivo falar em propósito, aqui, diante das limitações impostas à vida desse jovem (como não poder dar mais que alguns passos sem cair em cansaço profundo).

Mitocôndrias são organelas celulares, órgãos minúsculos que ajudam as células a produzir energia. São em geral representadas com o formato de bastonetes dotados de uma cavidade em ziguezague. Segundo uma teoria cada vez mais aceita (chamada de endossimbiose), são antigas bactérias que, em algum ponto dos bilhões de anos de evolução da vida sobre a Terra, se associaram com outras células e foram por elas "engolidas". Um dos indícios nesse sentido é o fato de possuírem DNA próprio (mtDNA, ou DNA mitocondrial), que não se mistura com o DNA do genoma propriamente dito, aquele contido nos cromossomos do núcleo celular.

Talvez você lembre das aulas do secundário que as mitocôndrias são herdadas apenas por parte de mãe (os cromossomos, por seu turno, são recebidos um do pai e um da mãe, formando pares -23 deles, no caso de seres humanos). Isso acontece porque as mitocôndrias dos espermatozóides são destruídas por proteínas do óvulo logo depois de penetrar no gameta feminino.

Há exceções para essa regra, e o jovem mencionado acima é uma delas. Ele só tem mitocôndrias "com defeito" (com duas letras trocadas no código de DNA) nas células musculares. Ao comparar esse mtDNA muscular com o de outros tecidos do paciente, como sangue, raízes de cabelo e pele, e também com o mtDNA de seu pai e de sua mãe, Marianne Schwartz e John Vissing, do Rigshospitaler de Copenhague (Dinamarca), descobriram que tinham vindo só do pai as mitocôndrias incapazes de dar às fibras musculares a energia de que necessitavam, no momento do exercício físico.

Além de contradizer a regra de que todas as mitocôndrias de uma pessoa provêm do óvulo materno, esse mtDNA suscita a pergunta: por que, afinal, ele se disseminou pelos músculos do paciente, se tudo indica que provém de poucas e raras mitocôndrias paternas que sobreviveram ao patrulhamento das proteínas do óvulo? As desvantagens para a pessoa afetada são óbvias, de resto.

O palpite de Schwartz e Vissing, que eles próprios assinalam ser controverso, é que as duas mutações representem uma vantagem replicativa para a própria mitocôndria. Eles supõem que elas de algum modo abreviem o tempo de produção das mitocôndrias com defeito, em comparação com o das normais, de modo que sua "população" aumenta.

Parece evidente que se trata de um resultado (do acaso), e não da realização de um propósito definido. Para o rapaz de 28 anos, a natureza foi mais madrasta do que mãe. Um despropósito, enfim -não fosse essa idéia também uma espécie de contradição em termos.
 

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