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02/09/2002 - 04h21

Cientista alerta para risco de politização do clima

CLAUDIO ANGELO
da Folha de S.Paulo, em Johannesburgo (África do Sul)

O IPCC, painel científico ligado às Nações Unidas que avalia o conhecimento existente no mundo sobre a mudança climática global, corre o risco de se tornar um órgão político e, o que é pior, orientado pela administração daquele que muitos vêem como o inimigo número um do clima global, George W. Bush.

O alerta é de Robert T. Watson, ex-presidente do órgão, afastado da liderança do painel em abril deste ano por influência da Casa Branca e a pedido da multinacional petroleira Exxon.

Convertido agora em cientista-chefe do Banco Mundial, Watson, 53, um britânico naturalizado americano, esteve à frente do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (ou IPCC, na abreviação em inglês) desde a sua fundação, em 1998, nomeado por Bill Clinton. Ficou conhecido por defender com veemência que o aquecimento global é um problema sério -uma mensagem que o presidente Bush e a indústria do petróleo não querem ouvir.

"Ninguém do governo dos EUA falou comigo formalmente", diz Watson. Fato é que, na eleição ocorrida em abril, a Casa Branca não renomeou o climatologista e deu seu apoio ao cientista indiano Rajendra Pachauri, que acabou levando a presidência do IPCC, num processo que Watson define como "democrático, mas altamente politizado" e ambientalistas vêem como manipulação.

O governo americano nega. Segundo funcionários da administração Bush, a Casa Branca estava interessada em ter à frente do IPCC um cientista do Terceiro Mundo, daí o apoio a Pachauri. Vale dizer que o brasileiro José Goldemberg também se candidatou e não teve apoio dos EUA.

Bob Watson, como prefere ser chamado, lidera hoje o Millenium Ecosystem Assessment, organização que quer montar um tipo de IPCC para a agricultura e a biodiversidade do planeta, levando em conta os impactos dos alimentos transgênicos. Da sede do Banco Mundial, em Washington, antes de embarcar para a conferência Rio +10 em Johannesburgo, ele deu a seguinte entrevista à Folha:


Folha -Se me permite o trocadilho, como está a atmosfera no IPCC depois dessa eleição conturbada? O sr. ainda está no painel?
Robert Watson - Não, eu não estou no painel neste momento. Para responder à questão, eu acho que foi uma eleição muito duvidosa, obviamente.

Acho que houve muitos sentimentos ruins entre os governos que me apoiaram e os que apoiaram o dr. Pachauri. No final das contas, todo mundo se deu conta de que foi um processo democrático e que era hora de ir pra casa fazer o trabalho.

Em outras palavras, a visão geral entre os governos foi que uma decisão havia sido tomada, o dr. Pachauri havia sido escolhido como presidente. O IPCC é muito mais importante que qualquer indivíduo particular.
Estou otimista de que o IPCC continuará muito forte.


Folha -O sr. disse que a eleição foi democrática, mas houve uma articulação de Washington para não reconduzi-lo. Quando José Goldemberg apresentou sua candidatura, representantes de alguns países já haviam sido orientados a votar em Pachauri. Foi manipulação?

Watson - O que eu quero dizer com "democrática" é que cada país tem um voto. Mas foi altamente politizada. O que eu não sei é o tamanho do lobby dos EUA contra mim ou contra José Goldemberg. Disseram que o governo dos EUA pôs muita pressão nos governos para não me eleger e eleger o dr. Pachauri.
Ninguém questiona que o governo indiano fez um lobby muito duro por Pachauri. Eles tentaram obter um consenso no G-77, o que não conseguiram, porque todos os Estados-ilhas votaram em mim e a América Latina votou em mim ou em Goldemberg.

Acho que Goldemberg não teve chance porque apresentou a candidatura muito tarde [a três dias da eleição". Minha posição na época era não dirigir o IPCC sozinho, mas com o dr. Pachauri ou com o dr. Goldemberg.

São duas pessoas excelentes, com uma perspectiva diferente, dois economistas energéticos, de dois grandes países em desenvolvimento. Mas, por uma razão política, isso foi negado. A África votou absolutamente em bloco em Pachauri. Houve claramente uma pressão política nos africanos... muitos países africanos disseram que queriam votar em mim, mas foram orientados a não fazê-lo. Em que grau isso foi pressão do G-77 ou do governos dos EUA, eu realmente não sei.


Folha -O governo dos EUA deu alguma justificativa ao sr.?
Watson - Definitivamente não. Houve provavelmente várias razões para eles não me apoiarem. Uma, eu era indicação política da administração Clinton-Gore. Duas, eu era muito incisivo como presidente do IPCC. E isso não é uma mensagem que a atual administração queira ouvir. Eles insistem em se esconder atrás do "nós não sabemos o bastante". Então, pode-se dizer que eles quiseram matar o mensageiro.


Folha -O sr. acha que o memorando da Exxon pedindo que o sr. não fosse reconduzido mergulha o painel numa crise de credibilidade?
Watson - Há sempre essa possibilidade. É por isso que o novo birô e os cientistas devem assegurar que o IPCC não seja politizado. Ele é um corpo político, vamos ser honestos. É um corpo científico, um corpo técnico e econômico, portanto, política faz parte dele, mas... eu espero que os cientistas e o novo birô não permitam que ele seja politizado de verdade.


Folha -Alguns críticos, como Dick Lindzen, do MIT, dizem que o IPCC é um painel político, mas com uma agenda ambientalista. Como o sr. responde a essas críticas?
Watson - Eu discordo totalmente. Eu fui parte do IPCC desde 1998, quando ele começou. Eu era autor principal, depois virei co-presidente do Grupo de Trabalho 2 e, depois, presidente do painel inteiro. Nós convidamos cientistas do mundo inteiro, de todos os países. Alguns de universidades, alguns da indústria, alguns de grupos ambientais. Convidamos céticos, como Dick Lindzen.

Acho que o processo é muito aberto. Temos um processo de "peer-review" [revisão por pares] totalmente aberto, nem escolhemos os revisores. Temos um grupo independente de editores, para assegurar que os comentários da revisão sejam levados em conta, contanto que sejam lógicos, não ideológicos. Nós sempre tivemos um relatório que é politicamente relevante, mas não politicamente prescritivo, e que não tem uma agenda pró-conservação.

Só que acontece que a vasta maioria dos especialistas ao redor do mundo acredita que nós, seres humanos, estamos mudando o clima do planeta e que vamos mudar ainda mais e de que isso terá efeitos adversos. A conclusão, você pode dizer, é pró-ambiente, mas é aí que está o estado do conhecimento hoje.

O outro ponto é que, quando estamos no processo de aprovação [dos relatórios], há países como a Arábia Saudita e o Kuwait que claramente não querem ver limitações ao óleo nem admitir que a mudança climática seja um assunto sério. Então, quando eles [os céticos] dizem que os governos do mundo fazem afirmações mais fortes que as dos cientistas nos sumários é, de novo, não entender a política da situação.


Folha -O sr. disse que uma das razões pelas quais os EUA não apoiaram a sua reeleição foi o fato de o sr. ser muito incisivo em suas posições. É possível ser cientista climático e não ser um militante?
Watson - É uma questão interessante. Esqueça-me por um segundo: acho que cientistas, individualmente, sejam eles brasileiros, americanos ou de qualquer lugar, têm o direito de lutar não só por aquilo que a ciência diz, mas, como indivíduos, pela forma como as decisões políticas devam ser.

Eu não vejo problemas com isso. Se um cientista realmente acredita que a mudança climática é algo sério, ele tem o direito de dizer que a ciência é forte e que ele acredita que deva haver menos emissões de dióxido de carbono ou, para usar um exemplo brasileiro, menos desmatamento na Amazônia. Mas, quando fazemos uma avaliação internacional, como no IPCC, nós devemos afastar a nossa militância e ir aos fatos.

É por isso que sempre tentamos fazer nossos relatórios não com cinco ou dez cientistas, mas com centenas, de vários lugares.


Folha -A União Européia ratificou o Protocolo de Kyoto recentemente e está começando a agir como se o tratado já estivesse em vigor. O sr. acha que a administração Bush vai ser forçada a aderir, cedo ou tarde?
Watson - Não só a União Européia, como o Japão também ratificou. O grande desafio, agora, é a Rússia. Se eles ratificarem, haverá massa crítica para a entrada em vigor. Eu, pessoalmente, sou bem pessimista sobre a ratificação pela administração Bush. Eles fizeram muitos comentários negativos sobre o Protocolo de Kyoto.

Em outras palavras, eu não estou otimista no que diz respeito a Kyoto, mas talvez eles tomem decisões mais sérias contra a mudança climática. Neste momento, eles nem admitem que a mudança climática seja um assunto ambiental sério. A longo prazo, a única forma de combater a mudança climática é ter os EUA na mesa. É missão dos governos e da comunidade acadêmica manter o diálogo aberto e constantemente alertar o governo e o Congresso dos EUA para o problema.

Eu vejo alguns sinais de otimismo no fato de que algumas das maiores multinacionais do mundo - Shell, British Petroleum e algumas americanas, como a IBM e a DuPont- estão voluntariamente se comprometendo a igualar ou exceder a meta de redução de emissões de Kyoto, e a maioria admite que está lucrando com isso, achando maneiras de ser mais eficientes energeticamente.

A BP tinha uma meta de, em 2010, reduzir 10% nas suas emissões. Ela fez isso em 2002 e está economizando dinheiro.

O jornalista Claudio Angelo viajou a Johannesburgo a convite da BrasilConnects Cultura e Ecologia

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