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26/01/2003 - 11h57

Artigo: O DNA não é um código genético

MARCELO LEITE
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo

Pelo menos na origem, a biologia molecular se parece muito com um complô de físicos para tomar de assalto a biologia. É impressionante a quantidade de cérebros oriundos dela que participaram de descobertas fundamentais na área. Basta dizer que eram físicos dois -Francis Crick e Maurice Wilkins- dos três ganhadores do Prêmio Nobel de Medicina em 1962, pela descoberta da estrutura do DNA nove anos antes (o terceiro foi o biólogo James Watson).

Muito antes da dupla hélice, porém, o plano da invasão já havia sido delineado por Erwin Schrödinger, uma das cabeças da mecânica quântica, num livro clássico: "What Is Life?" (O que É Vida?), lançado em 1944. Há edição brasileira, da Unesp (196 págs., R$ 25).

A maioria dos físicos convertidos à biologia diz que leu o opúsculo de Schrödinger e se inspirou nele. Nesse texto se encontra a célebre dedução de que as informações hereditárias (genes) estariam contidas num "sólido aperiódico", uma molécula orgânica dotada de ordem, mas não de repetição monótona, a ser identificada nos cromossomos (os corpúsculos do núcleo celular que podiam ser tingidos e visualizados quando eram duplicados durante a divisão celular).

Schrödinger parece nunca ter ouvido falar de ácidos nucleares como o DNA, antes de escrever o livro. Curiosamente, a obra foi publicada no mesmo ano em que Oswald Avery comprovou que o DNA, e não uma proteína, era a substância da hereditariedade.

Mesmo assim, o físico austríaco inaugurou a matriz conceitual até hoje empregada na genética molecular, segundo a qual o DNA contém o chamado "código da vida". Ou seria um texto cifrado, como escreveu Schrödinger, de forma premonitória, no segundo capítulo de "O que É Vida"?

Ficou consagrada a expressão "código" para designar a correspondência entre as bases nitrogenadas que formam os degraus do DNA (as químicas A, T, C e G), agrupadas de três em três (formando os "códons", uma alusão a códigos), e a ordem dos aminoácidos que servem de tijolos na construção de proteínas específicas pela célula. Mas o próprio Francis Crick já admitiu que a noção é errada:

"Foi só anos depois que descobri que deveríamos ter usado a palavra "cifra" [como no livro de Schrödinger"", disse Crick em entrevista a Horace Freeland Judson, autor de "The Eighth Day of Creation" (O Oitavo Dia da Criação), talvez o melhor livro de história da biologia molecular já escrito.

A diferença é sutil. Códigos são relações estabelecidas palavra a palavra, ou objeto a objeto, como num jogo de batalha naval, em que um quadradinho representa submarino, dois, cruzador, quatro, encouraçado, e cinco, porta-aviões. Precisam, por isso, de dicionários completos para serem usados. Para o exemplo da batalha naval, o dicionário é curto porque são poucas as palavras a codificar.

No caso da cifra, a regra é diversa: os símbolos correspondem a letras, não a vocábulos. Basta uma lista com 20 e poucas entradas para decifrar um texto cifrado (permita o pleonasmo). Vale para o malbatizado "código" Morse, assim como para os chamados criptogramas das populares revistas "Coquetel".

Parece picuinha, mas metáforas têm o poder de conduzir o pensamento de modo imperceptível. Para quem se preocupa com os exageros que acompanham a imagem da genética, são reveladoras as palavras ditas a Judson por Crick: "Código" soa melhor, também. "Cifra genética" não soa como nada tão impressionante

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
 

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