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02/02/2003
-
03h24
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo
Assentada a maior parte da poeira erguida pela seita dos raelianos com o "anúncio" do suposto nascimento do primeiro ser humano clonado em 26 de dezembro, a possibilidade de que tudo não tenha passado de um engodo torna-se cada vez maior. Afinal, a criança nunca foi apresentada, nem a análise de seu DNA, nem a identidade dos pais, nem o país onde teria vindo à luz. Nada. Zero.
Do ponto de vista dos usos e costumes científicos, é como se Eva nunca tivesse nascido. E quem alimentava a esperança ou o temor de que um mínimo de bom senso visitasse Claude "Raël" Vorilhon com a mesma frequência de seus amigos ETs viu a chance desmoronar com a entrevista peculiar que "Sua Santidade" concedeu a Salvador Nogueira, publicada na Folha em 20 de janeiro.
Já o rescaldo da aventura é mais difícil de ser avaliado. De um lado, não paira muita dúvida de que a anunciação pela "bispa" raeliana Brigitte Boisselier teve pelo menos o mérito de suscitar o debate. Claro que não se trata de uma justificativa, e também é evidente que boa parte das discussões teve um caráter frívolo -do gênero que se pergunta se seria o caso de clonar Gisele Bündchen ou Daniela Cicarelli, as moças da hora.
Por outro lado, esse debate necessário também já conta com alguns pesos-pesados, como Jürgen Habermas e Francis Fukuyama (abordados em colunas passadas), no exterior, e Renato Janine Ribeiro, no Brasil. Foi o filósofo brasileiro quem chamou minha atenção para uma das poucas argumentações de bom nível em favor, ainda que tentativamente, da clonagem reprodutiva.
O argumento apareceu num texto que o geneticista Michel Revel, presidente do comitê de bioética da Academia de Ciências de Israel, publicou no jornal francês "Le Monde" de 4 de janeiro. Revel classifica a iniciativa dos raelianos sem meias palavras -se for mesmo verdadeira- como um experimento com seres humanos que viola as regras surgidas a partir dos processos de Nuremberg e da condenação universal das práticas biomédicas nazistas durante a Segunda Guerra. Deixa, no entanto, uma porta aberta para a clonagem reprodutiva.
"Um verdadeiro debate sobre a clonagem deveria se preocupar com suas aplicações médicas, como a possibilidade de procriar para um casal estéril que não queira utilizar um banco anônimo de esperma ou uma doação de óvulo por terceiros", defende Revel. "Ou a possibilidade de assegurar a não-transmissão do gene causador de uma doença hereditária num casal de alto risco."
Revel está preocupado com a instrumentalização da revolta causada pelos raelianos em favor dos radicais conservadores que querem proibir toda e qualquer clonagem, mesmo a terapêutica. Ele acha que a pesquisa pode inclusive elucidar os mecanismos que tornam a clonagem reprodutiva tão arriscada. Diminuindo ou eliminando o risco do procedimento, sua aplicação se tornaria uma decisão dos médicos, obedecidos os ditames éticos da profissão.
O geneticista diz que a fertilização "in vitro" (FIV) suscitou reações semelhantes, nos anos 1970, mas terminou aceita e hoje ajuda milhares de casais (ainda que o número seja ínfimo, diante da maioria que pode procriar pelo método tradicional). Pode ser, mas antes será preciso convencer muita gente -inclusive este colunista- de que a clonagem reprodutiva não cruza fronteira alguma que a FIV já não tenha cruzado.
Artigo: Clones anunciados
MARCELO LEITEEditor de Ciência da Folha de S.Paulo
Assentada a maior parte da poeira erguida pela seita dos raelianos com o "anúncio" do suposto nascimento do primeiro ser humano clonado em 26 de dezembro, a possibilidade de que tudo não tenha passado de um engodo torna-se cada vez maior. Afinal, a criança nunca foi apresentada, nem a análise de seu DNA, nem a identidade dos pais, nem o país onde teria vindo à luz. Nada. Zero.
Do ponto de vista dos usos e costumes científicos, é como se Eva nunca tivesse nascido. E quem alimentava a esperança ou o temor de que um mínimo de bom senso visitasse Claude "Raël" Vorilhon com a mesma frequência de seus amigos ETs viu a chance desmoronar com a entrevista peculiar que "Sua Santidade" concedeu a Salvador Nogueira, publicada na Folha em 20 de janeiro.
Já o rescaldo da aventura é mais difícil de ser avaliado. De um lado, não paira muita dúvida de que a anunciação pela "bispa" raeliana Brigitte Boisselier teve pelo menos o mérito de suscitar o debate. Claro que não se trata de uma justificativa, e também é evidente que boa parte das discussões teve um caráter frívolo -do gênero que se pergunta se seria o caso de clonar Gisele Bündchen ou Daniela Cicarelli, as moças da hora.
Por outro lado, esse debate necessário também já conta com alguns pesos-pesados, como Jürgen Habermas e Francis Fukuyama (abordados em colunas passadas), no exterior, e Renato Janine Ribeiro, no Brasil. Foi o filósofo brasileiro quem chamou minha atenção para uma das poucas argumentações de bom nível em favor, ainda que tentativamente, da clonagem reprodutiva.
O argumento apareceu num texto que o geneticista Michel Revel, presidente do comitê de bioética da Academia de Ciências de Israel, publicou no jornal francês "Le Monde" de 4 de janeiro. Revel classifica a iniciativa dos raelianos sem meias palavras -se for mesmo verdadeira- como um experimento com seres humanos que viola as regras surgidas a partir dos processos de Nuremberg e da condenação universal das práticas biomédicas nazistas durante a Segunda Guerra. Deixa, no entanto, uma porta aberta para a clonagem reprodutiva.
"Um verdadeiro debate sobre a clonagem deveria se preocupar com suas aplicações médicas, como a possibilidade de procriar para um casal estéril que não queira utilizar um banco anônimo de esperma ou uma doação de óvulo por terceiros", defende Revel. "Ou a possibilidade de assegurar a não-transmissão do gene causador de uma doença hereditária num casal de alto risco."
Revel está preocupado com a instrumentalização da revolta causada pelos raelianos em favor dos radicais conservadores que querem proibir toda e qualquer clonagem, mesmo a terapêutica. Ele acha que a pesquisa pode inclusive elucidar os mecanismos que tornam a clonagem reprodutiva tão arriscada. Diminuindo ou eliminando o risco do procedimento, sua aplicação se tornaria uma decisão dos médicos, obedecidos os ditames éticos da profissão.
O geneticista diz que a fertilização "in vitro" (FIV) suscitou reações semelhantes, nos anos 1970, mas terminou aceita e hoje ajuda milhares de casais (ainda que o número seja ínfimo, diante da maioria que pode procriar pelo método tradicional). Pode ser, mas antes será preciso convencer muita gente -inclusive este colunista- de que a clonagem reprodutiva não cruza fronteira alguma que a FIV já não tenha cruzado.
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