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02/02/2003 - 03h30

Artigo: O Universo de Babel

MARCELO GLEISER
especial para a Folha de S.Paulo

Multiverso é uma palavra nova, inventada por cosmólogos para diferenciar o Universo em que vivemos de um outro que não só o contém, como também a todos os universos possíveis.

Em "A Biblioteca de Babel", o escritor argentino Jorge Luis Borges conta de uma biblioteca que contém todos os livros que foram escritos e os que ainda vão ser. Nela, em salas hexagonais como em uma colméia, cada qual com o mesmo número de prateleiras replicadas indefinidamente, encontram-se livros que incluem todas as possíveis combinações de letras e símbolos do alfabeto, a maioria delas não fazendo qualquer sentido.

Encontram-se também comentários sobre todos os livros já escritos e os comentários sobre esses comentários, enfim, tudo o que é possível existir na página impressa está nessa biblioteca.

Borges provavelmente pensava na biblioteca como uma metáfora da dimensão infinita do Universo e de nossos esforços, na maioria fúteis, de tentar compreendê-lo em sua totalidade, feito os bibliotecários, que passavam a vida tentando decifrar o enigma da biblioteca, o seu significado fundamental.

O mistério da origem do Universo, o Big Bang, como é conhecido, é o nosso grande enigma de Babel. Todas as observações que temos até o momento, que parecem bem conclusivas, indicam que o Universo teve mesmo uma infância muito quente e densa, e que ele vem se expandindo e se resfriando desde então.

Esse "então", o evento que deflagrou a existência do cosmo, ocorreu há aproximadamente 14 bilhões de anos. Mas que evento foi esse? Nos anos 40, alguns cientistas, revoltados com as possíveis implicações religiosas de um Universo com um evento inicial (muito semelhante ao "Gênese"), propuseram um modelo alternativo, que ficou conhecido como modelo do estado padrão.

Segundo ele, o Universo não teve um começo e nem terá um fim, permanecendo sempre essencialmente o mesmo. A diluição de matéria causada pela expansão cósmica (que eles já conheciam) era compensada por um processo de criação de matéria, de modo a deixar as coisas aproximadamente iguais, feito uma banheira destampada, mas com água jorrando da torneira. Segundo esse modelo, a questão da origem do Universo simplesmente não fazia sentido.

Nos anos 60, o modelo do estado padrão foi abandonado, em nome do modelo do Big Bang, o aceito hoje. Pelo jeito, o Universo teve mesmo uma origem. Mas será que não existe outro modo de driblá-la, talvez fazendo-a menos fundamental do que A Origem?

Isso seria possível, ao menos em princípio, caso o Universo tivesse matéria suficiente para frear a sua expansão. A atração gravitacional iria então forçar a contração do cosmo sobre si mesmo, até a sua implosão final. Ela seria seguida de nova expansão, que, por sua vez, seria seguida por outra contração, e assim por diante, como uma fênix eternamente renascendo de suas próprias cinzas. Essa opção, mesmo que muito bela, parece não corresponder ao que é observado. O que nos resta?
Resta-nos a possibilidade de nosso Universo não ser o único que existe, mas parte de um multiverso, uma entidade infinita, de onde brotam e desaparecem universos de todos os tipos, como bolhas em uma sopa. O multiverso é eterno e infinito, mas os universos que dele brotam podem não ser. Desse borbulhar cósmico surgem alguns universos que podem sobreviver mais do que outros, feito o nosso, crescendo o suficiente para criar estruturas organizadas capazes de gerar complexidade, de estrelas e planetas a bactérias e mamíferos. Claro, tal como com os poucos livros que fazem sentido na Biblioteca de Babel, esses universos com estruturas complexas são de longe os mais raros. Na sua maioria, os universos desaparecem tão rapidamente quanto surgem, experimentos falhos no constante borbulhar do multiverso.

Isso parece metafísica, mas não é, ao menos completamente. Existem teorias cosmológicas, formuladas matematicamente, que prevêem a existência desse multiverso. Claro, a idéia é altamente especulativa. Mas ela é interessante o suficiente para ser estudada com seriedade. Afinal, caso vivamos em uma bolha neste vasto multiverso, nossa origem, mesmo que importante para nós, é mais uma ocorrência insignificante na sua existência atemporal.

Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"

 

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