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04/03/2003 - 07h49

Burrice é genética, arrisca James Watson

MARCELO LEITE
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo

Todos os geneticistas e biotecnólogos que vêem no determinismo genético (a crença de que tudo num organismo é prefixado pelos genes) apenas um tigre de papel se esqueceram de combinar isso com o mais célebre e controvertido de seus pares, James Watson. Na semana em que se comemoram os 50 anos de sua descoberta da estrutura do DNA com Francis Crick, Watson, 75, volta a chocar especialistas e não-especialistas dizendo que a burrice é genética e que seria moralmente imperativo modificar genes para eliminá-la.

A notícia foi dada na sexta-feira passada pelo jornal britânico "The Times": em depoimento para a série de documentários de TV intitulada "DNA", que estréia sábado na emissora Channel 4 (Reino Unido), Watson afirma que pessoas de baixa inteligência sem deficiência mental conhecida sofreriam de uma doença hereditária tão real quanto a hemofilia.

"Se você for realmente burro, eu chamaria isso de uma doença", diz o Nobel de 1962 na série de TV, segundo reportagem de Mark Henderson no "The Times" (www.timesonline.co.uk). "Os 10% inferiores que realmente têm uma dificuldade, mesmo na escola elementar -qual é a causa disso? Muitas pessoas gostariam de dizer: "Bem, a pobreza, coisas assim". Provavelmente não é assim. Eu gostaria então de me livrar disso, para ajudar os 10% inferiores."

Aperfeiçoar os filhos

Watson dá uma justificativa ética para o aperfeiçoamento genético: "Parece injusto que algumas pessoas não tenham essa oportunidade. Assim que houver um meio de melhorar nossos filhos, ninguém poderá contê-lo. Os pais que aperfeiçoarem seus filhos... seus filhos se tornarão aqueles que vão dominar o mundo".

Não é a primeira vez que Watson choca o público. Ele já defendeu, no passado, além das terapias genéticas convencionais (injeção de genes "corrigidos" em pacientes com doenças metabólicas), a modificação de genes na linhagem germinativa de células humanas (gametas, como óvulos e espermatozóides). Isso faria com que a alteração fosse herdada pelos descendentes da pessoa.

No caso da doença "burrice", se um dia se tornasse possível encontrar genes diretamente associados com ela, eles precisariam ser eliminados nos tecidos embrionários que, no futuro, dariam origem aos gametas. Ao se tornar um adulto, essa pessoa geneticamente modificada quando ainda era embrião geraria filhos sem aqueles genes. Se muitos seres humanos recorressem ao tratamento, a "burrice" tenderia a desaparecer da espécie -um sonho bom demais para ser verdade.

"Honest Jim"

A ciência ainda está muito longe de conseguir esse tipo de controle sobre as aptidões e o comportamento humanos. Por ora, tais elucubrações só confirmam a fama de desbocado de Watson, que chegou a ser alcunhado por isso de "Honest Jim" (Jim Franco -isto é, franco demais).

Nada costuma ser tão simples na genética, e Watson é, ou deveria ser, o primeiro a sabê-lo. Há dificuldades dos dois lados, tanto do genótipo (genes que acarretariam uma característica) quanto do fenótipo (características de fato manifestadas no indivíduo).

Não só é difícil e provavelmente impossível definir um conceito operacional da doença "burrice" como, até o presente, nenhum gene pôde ser inequivocamente associado com ela. Nem, tampouco, com seu oposto: inúmeros candidatos a genes "da" inteligência foram lançados, nas últimas décadas, apenas para serem abatidos pela crítica de outros cientistas.

Complexidade desprezada

Pesquisas do Projeto Genoma Humano, que Watson ajudou a fundar em 1989, estão revelando uma complexidade nas relações entre dezenas de milhares de genes e proteínas incompatível com o modelo simplificado das doenças metabólicas. Nesses casos raros, uma simples troca de "letra" num gene pode desencadear efeitos devastadores, como a fibrose cística ou o mal de Huntington.

O esquema "um gene/uma doença" não é aplicável nem mesmo a males com mecanismos mais imediatamente bioquímicos, como o câncer. Menos ainda podem ser usados para entender -controlar, então, nem pensar- manifestações complexas como "inteligência" ou "burrice".
"Ele está falando em alterar algo que a maioria das pessoas vê como parte da variação humana normal, e isso, acredito, está errado", disse Tom Shakespeare, bioeticista da Universidade de Newcastle (Reino Unido), a Mark Henderson, do jornal londrino.

"O que me espanta, também, é que ele deveria pensar como um geneticista, mas não leva em consideração a complexidade de milhares de genes e contextos particulares inter-relacionados no ambiente, que produzem o fenótipo da inteligência... Receio que ele tenha causado mais mal do que bem, apesar de sua liderança no Projeto Genoma Humano e de sua descoberta de 1953."

Genes, garotas e autistas

No documentário, James Watson também se diz a favor da disseminação de genes "engenheirados" de beleza: "As pessoas dizem que seria terrível se tornássemos todas as garotas bonitas. Eu acho que seria genial". Nada que não se pudesse esperar de alguém que intitula "Genes, Garotas e Gamow" a sequência de seu não menos polêmico e autobiográfico "A Dupla Hélice", em que, ao lado de peripécias sobre o código genético com o físico George Gamow, a obsessão e as dificuldades de Watson com o sexo oposto chegam a rivalizar com suas equivalentes na biologia molecular.

O "The Times" informa ainda que Watson tem um filho que sofre de uma deficiência cognitiva similar ao autismo, fato que "Honest Jim" não costuma abordar em público, mas que teria influenciado suas opiniões.

Outro biólogo bem conhecido do público, o ensaísta Stephen Jay Gould (morto no ano passado), também tinha um filho autista, Josh, exímio calculista de calendários, capaz de dizer em segundos em que dia da semana cai uma data qualquer. Paradoxalmente, Gould se tornou um ferrenho adversário do determinismo genético -o que não deixa de ser uma indicação de que parece haver muito mais determinações entre genes e cultura do que pode sonhar a biotecnologia.
 

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