Saltar para o conteúdo principal

Publicidade

Publicidade

 
 
  Siga a Folha de S.Paulo no Twitter
09/03/2003 - 04h54

Opinião: a segunda morte de Dolly

MARCELO LEITE
editor de Ciência da Folha de S.Paulo

É só uma ovelha empalhada, não um bezerro de ouro, mas serve: os diretores do Museu Real da Escócia, em Edimburgo, já anseiam pela chegada da múmia de Dolly (primeiro animal de sangue quente clonado de outro adulto). Ela fará companhia na seção de mamíferos à colega Morag, também pioneira, a seu modo (copiada, igualmente, mas de uma célula de embrião, ou seja, de uma ovelha que não chegou a nascer), mas a direção do museu acredita que Dolly atrairá multidões, diferentemente de Morag.

É provável que ninguém note a diferença, se os museólogos não providenciarem boas placas de identificação. Por mais fotografada que tenha sido, e por mais onipresente que sua imagem se tenha tornado, Dolly não passava de uma ovelha como qualquer outra -em aparência, pelo menos.

Na intimidade das células de seu organismo, Dolly diferia de qualquer outra ovelha que tenha posto os cascos sobre a terra. Inclusive de Morag, que, apesar de também ter sido clonada, não o foi de uma célula adulta. Isso faz muita diferença, pois a célula adulta, como assegura um ditado injusto para com cachorros idosos, tem certa dificuldade para aprender truques novos, como produzir um embrião. Só o faz sob tortura -no caso, o choque elétrico usado para fundir a célula velha com um óvulo novo e desprovido de núcleo.

O problema está na falta de acordo sobre quais são as características fisiológicas básicas que afastam Dolly das outras ovelhas. Como ela foi sacrificada com metade da idade normal em que morrem suas parentes de espécie, e com uma doença de ovelhas anciãs, voltou logo à tona a hipótese de que ela sofresse de velhice precoce, por ter sido fabricada com uma célula de segunda mão, e não zero-quilômetro (até artrite a ovelha famosa teve, na pata traseira esquerda, um ano antes de morrer).

De objetivo se sabe que Dolly desenvolveu uma doença respiratória induzida por vírus típica de sua espécie, a adenomatose pulmonar de ovinos. O diagnóstico foi feito com auxílio de uma tomografia, que revelou vários tumores em um dos pulmões. Desenganada, foi sacrificada na tarde de 14 de fevereiro. O último caso de ovino a morrer dessa doença no Instituto Roslin havia ocorrido um ano e meio antes, informa Henry Nicholls na "BioMedNet Magazine" (news.bmn.com/magazine).

O Roslin nega que o problema de Dolly tenha sido velhice precoce. Harry Griffin, seu diretor, acredita que a deficiência da ovelha mais famosa do mundo, e provavelmente de todos os clones, é pura fragilidade. "A idéia [de velhice precoce" foi muito mais uma invenção da mídia baseada em muito pouca evidência", disse a Nicholls. Atsuo Ogura, que produz clones de camundongos às dúzias no Japão e os vê morrer de pneumonia, concorda com Griffin. Ele aposta que a autópsia de Dolly vai revelar um sistema imune (de defesa) deficiente.

Nenhum dos dois cientistas discorda, porém, de que essa fragilidade decorre de se tratar de clones, ainda que não sejam senis antes do tempo. Ora, para o que realmente interessa -a clonagem como técnica biotecnológica que os afoitos cogitam aplicar em humanos-, não faz a menor diferença. Além de ser uma bobagem, seria também uma temeridade. Coisa boa não é.

Ao lado dos respectivos nomes, os museólogos de Edimburgo vão precisar escrever muita coisa nas placas da dupla empalhada, se quiserem ensinar à horda de colegiais e turistas algo mais que o culto da personalidade ovina.

E-mail: cienciaemdia@uol.com.br


 

Publicidade

Publicidade

Publicidade


Voltar ao topo da página