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11/04/2003
-
10h53
da Folha de S.Paulo
Poucas coisas parecem um sinônimo tão óbvio de selvageria, mas o canibalismo pode ter sido tão importante para os ancestrais da humanidade que deixou uma marca nos próprios genes do Homo sapiens em todo o planeta.
A assinatura genética desse possível "pecado original" foi rastreada por uma equipe de cientistas britânicos, na forma de uma resistência natural de certos indivíduos às chamadas doenças de príon. Essas moléstias, como o mal da vaca louca, são transmitidas pelo consumo de carne contaminada. A grande questão é saber qual carne -e, para os pesquisadores, a balança dos dados pende para a carne de seres humanos.
Foi a partir do povo foré, de Papua-Nova Guiné, que John Collinge e colaboradores do Imperial College de Londres traçaram sua teoria.
Até os anos 50 do século passado, a etnia devorava ritualmente as pessoas que morriam. A prática causava epidemias do "kuru", um mal que chegou a matar 1% da população foré por ano. Como se descobriu mais tarde, o "kuru" era uma doença de príon, transmitida durante os festins antropofágicos.
Esse tipo de moléstia surge graças a uma versão alterada e infecciosa do príon celular, uma proteína comum no cérebro. Aparentemente, o príon maligno consegue modificar as formas normais da proteína, gerando um agregado protéico que arrebenta os neurônios (células nervosas) e leva gradualmente à morte.
Acontece que a troca de uma só "letra" química do DNA no gene que contém instruções para estruturar o príon normal parece conferir resistência à versão maligna da proteína. Isso só ocorre quando a troca se dá em uma das duas cópias do gene (todas as pessoas recebem duas versões de cada gene, uma do pai e outra da mãe). Pelo visto, a alteração cria uma proteína um pouco diferente, que o príon assassino tem mais dificuldade de afetar.
O estudo saiu na edição de hoje da revista americana "Science" (www.sciencemag.org).
Entre os forés, 55% da população -e quase todos os que estavam vivos quando eles ainda eram canibais- tinha uma cópia de cada tipo de gene. Era de esperar, mas 48% dos turcos, 38% dos franceses e 32% dos jamaicanos tinham o mesmo perfil de DNA.
Isso indicaria que o canibalismo ajudou a fazer com que a troca de "letra" se tornasse vantajosa ao longo da evolução humana. Do contrário, muitos morreriam de doenças de príon. A mutação parece ser exclusivamente humana: não aparece nos outros primatas e existe há cerca de 500 mil anos.
"Não é possível afirmar que o canibalismo causou isso só com base nesse trabalho", diz Sandro de Souza, do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer em São Paulo. "Os dados sobre essa prática em hominídeos [como os neandertais] é que tornam a tese mais forte", pondera o biólogo.
Uma possibilidade é que a resistência tivesse surgido graças ao consumo de carne de outros animais com a doença, como ocorre até hoje com o mal da vaca louca. "Mas não é tão comum que o príon salte a barreira de espécies. Seria mesmo mais fácil passar de pessoa para pessoa", diz Souza.
Canibalismo deixa marca no DNA humano
REINALDO JOSÉ LOPESda Folha de S.Paulo
Poucas coisas parecem um sinônimo tão óbvio de selvageria, mas o canibalismo pode ter sido tão importante para os ancestrais da humanidade que deixou uma marca nos próprios genes do Homo sapiens em todo o planeta.
A assinatura genética desse possível "pecado original" foi rastreada por uma equipe de cientistas britânicos, na forma de uma resistência natural de certos indivíduos às chamadas doenças de príon. Essas moléstias, como o mal da vaca louca, são transmitidas pelo consumo de carne contaminada. A grande questão é saber qual carne -e, para os pesquisadores, a balança dos dados pende para a carne de seres humanos.
Foi a partir do povo foré, de Papua-Nova Guiné, que John Collinge e colaboradores do Imperial College de Londres traçaram sua teoria.
Até os anos 50 do século passado, a etnia devorava ritualmente as pessoas que morriam. A prática causava epidemias do "kuru", um mal que chegou a matar 1% da população foré por ano. Como se descobriu mais tarde, o "kuru" era uma doença de príon, transmitida durante os festins antropofágicos.
Esse tipo de moléstia surge graças a uma versão alterada e infecciosa do príon celular, uma proteína comum no cérebro. Aparentemente, o príon maligno consegue modificar as formas normais da proteína, gerando um agregado protéico que arrebenta os neurônios (células nervosas) e leva gradualmente à morte.
Acontece que a troca de uma só "letra" química do DNA no gene que contém instruções para estruturar o príon normal parece conferir resistência à versão maligna da proteína. Isso só ocorre quando a troca se dá em uma das duas cópias do gene (todas as pessoas recebem duas versões de cada gene, uma do pai e outra da mãe). Pelo visto, a alteração cria uma proteína um pouco diferente, que o príon assassino tem mais dificuldade de afetar.
O estudo saiu na edição de hoje da revista americana "Science" (www.sciencemag.org).
Entre os forés, 55% da população -e quase todos os que estavam vivos quando eles ainda eram canibais- tinha uma cópia de cada tipo de gene. Era de esperar, mas 48% dos turcos, 38% dos franceses e 32% dos jamaicanos tinham o mesmo perfil de DNA.
Isso indicaria que o canibalismo ajudou a fazer com que a troca de "letra" se tornasse vantajosa ao longo da evolução humana. Do contrário, muitos morreriam de doenças de príon. A mutação parece ser exclusivamente humana: não aparece nos outros primatas e existe há cerca de 500 mil anos.
"Não é possível afirmar que o canibalismo causou isso só com base nesse trabalho", diz Sandro de Souza, do Instituto Ludwig de Pesquisa sobre o Câncer em São Paulo. "Os dados sobre essa prática em hominídeos [como os neandertais] é que tornam a tese mais forte", pondera o biólogo.
Uma possibilidade é que a resistência tivesse surgido graças ao consumo de carne de outros animais com a doença, como ocorre até hoje com o mal da vaca louca. "Mas não é tão comum que o príon salte a barreira de espécies. Seria mesmo mais fácil passar de pessoa para pessoa", diz Souza.
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