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25/05/2003
-
03h56
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo
A barragem de fogo mercadológico na estréia do filme "Matrix Reloaded" é ensurdecedora e ofuscante como a política externa de George W. Bush. Só os mais ingênuos encontrarão, porém, um paradoxo entre a onipresença dos óculos escuros de Keanu Reeves e a denúncia um tanto cifrada, no filme inaugural da série ("Matrix", ora recarregado em cores e trucagens), do realismo virtual que a disseminação da informática vai impondo à esfera da cultura.
Contradição, talvez, porque a fita e seu marketing resultam tão mistificadores quanto a rede Matrix em que seus heróis são de início escravos e depois, senhores (melhor dizendo, em que Neo, o avatar "vivido" por Reeves, se torna o Senhor). Paradoxos de verdade, contudo, nascem da contradição e evoluem para a reflexão, o que não é o caso da fita "Matrix".
Para quem não assistiu ao primeiro filme, trata-se da parábola do despertar de Neo para a irrealidade do mundo em que vive como programador de computadores de dia e hacker à noite. Ele -o mundo- não passa de uma gigantesca simulação, que multidões de humanos vegetando em contêineres cheios de líquido são compelidas a "sonhar" por um soquete na base do crânio, porta de comunicação que uma hiper-rede informática usa para controlar a humanidade.
Para Morpheus, líder de um grupo de resistência que conseguiu escapar da Matrix, Neo é "The One", Aquele que aprenderá a manipular a rede em causa própria. De fato, após rápida reeducação, Neo chega ao fim da fita capaz de aparar projéteis com a mão (o famoso "tempo de bala") e de entrar no "corpo" do avatar adversário para explodi-lo.
O filme é cheio de panes de verossimilhança. Para começar, os milhões de humanos vegetando em líquido estão supostamente produzindo energia, como se fossem pilhas. Uma bobagem sem pé nem cabeça, pois o calor produzido pelos corpos teria valor necessariamente inferior à energia consumida em seu metabolismo. Outra coisa que não faz muito sentido é a obrigatoriedade de os heróis atenderem a uma ligação de telefone com fio para sair da rede, mas os fãs decerto contam com uma boa e retorcida explicação para tais objeções pedestres.
"Matrix" encontra-se também atulhado de referências. O espectador já começa a desconfiar de algum excesso de pretensão numa das cenas iniciais, em que Neo vai à estante pegar um disquete escondido num livro, e os Wachowskis exibem que se trata de uma obra de Jean Baudrillard, filósofo francês que concebe os simulacros como realidade essencial da existência contemporânea.
Talvez seja a miríade de referências, talvez a sucessão de peripécias da imaginação e do pensamento permitidas pelo esgarçamento da noção de realidade. Fato é que "Matrix" se tornou objeto de culto entre colegiais e de discussão nas aulas de filosofia de pelo menos uma escola secundária da elite paulistana.
Para cultivar o espírito crítico da rapaziada, porém, talvez valesse mais a pena perguntar se toda a parafernália não serve mais ao propósito de simular conteúdo e profundidade no que não passa de mais um filme de ação, de mais um pastiche hollywoodiano -da variedade "cabeça". Afinal, vinda de onde vem, qualquer denúncia da irrealidade virtual deveria parecer-se mais com uma contradição em termos, mesmo quando consegue passar por sinal de autenticidade e de independência (e, com isso, vender alguns DVDs e pares de óculos a mais).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
Artigo: o pastiche "Matrix"
MARCELO LEITEEditor de Ciência da Folha de S.Paulo
A barragem de fogo mercadológico na estréia do filme "Matrix Reloaded" é ensurdecedora e ofuscante como a política externa de George W. Bush. Só os mais ingênuos encontrarão, porém, um paradoxo entre a onipresença dos óculos escuros de Keanu Reeves e a denúncia um tanto cifrada, no filme inaugural da série ("Matrix", ora recarregado em cores e trucagens), do realismo virtual que a disseminação da informática vai impondo à esfera da cultura.
Contradição, talvez, porque a fita e seu marketing resultam tão mistificadores quanto a rede Matrix em que seus heróis são de início escravos e depois, senhores (melhor dizendo, em que Neo, o avatar "vivido" por Reeves, se torna o Senhor). Paradoxos de verdade, contudo, nascem da contradição e evoluem para a reflexão, o que não é o caso da fita "Matrix".
Para quem não assistiu ao primeiro filme, trata-se da parábola do despertar de Neo para a irrealidade do mundo em que vive como programador de computadores de dia e hacker à noite. Ele -o mundo- não passa de uma gigantesca simulação, que multidões de humanos vegetando em contêineres cheios de líquido são compelidas a "sonhar" por um soquete na base do crânio, porta de comunicação que uma hiper-rede informática usa para controlar a humanidade.
Para Morpheus, líder de um grupo de resistência que conseguiu escapar da Matrix, Neo é "The One", Aquele que aprenderá a manipular a rede em causa própria. De fato, após rápida reeducação, Neo chega ao fim da fita capaz de aparar projéteis com a mão (o famoso "tempo de bala") e de entrar no "corpo" do avatar adversário para explodi-lo.
O filme é cheio de panes de verossimilhança. Para começar, os milhões de humanos vegetando em líquido estão supostamente produzindo energia, como se fossem pilhas. Uma bobagem sem pé nem cabeça, pois o calor produzido pelos corpos teria valor necessariamente inferior à energia consumida em seu metabolismo. Outra coisa que não faz muito sentido é a obrigatoriedade de os heróis atenderem a uma ligação de telefone com fio para sair da rede, mas os fãs decerto contam com uma boa e retorcida explicação para tais objeções pedestres.
"Matrix" encontra-se também atulhado de referências. O espectador já começa a desconfiar de algum excesso de pretensão numa das cenas iniciais, em que Neo vai à estante pegar um disquete escondido num livro, e os Wachowskis exibem que se trata de uma obra de Jean Baudrillard, filósofo francês que concebe os simulacros como realidade essencial da existência contemporânea.
Talvez seja a miríade de referências, talvez a sucessão de peripécias da imaginação e do pensamento permitidas pelo esgarçamento da noção de realidade. Fato é que "Matrix" se tornou objeto de culto entre colegiais e de discussão nas aulas de filosofia de pelo menos uma escola secundária da elite paulistana.
Para cultivar o espírito crítico da rapaziada, porém, talvez valesse mais a pena perguntar se toda a parafernália não serve mais ao propósito de simular conteúdo e profundidade no que não passa de mais um filme de ação, de mais um pastiche hollywoodiano -da variedade "cabeça". Afinal, vinda de onde vem, qualquer denúncia da irrealidade virtual deveria parecer-se mais com uma contradição em termos, mesmo quando consegue passar por sinal de autenticidade e de independência (e, com isso, vender alguns DVDs e pares de óculos a mais).
E-mail: cienciaemdia@uol.com.br
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