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29/06/2003
-
03h08
especial para a Folha de S.Paulo
O ano de 1953 foi notável para a biologia. James Watson e Francis Crick apresentaram seus resultados sobre a estrutura da molécula de DNA, revelando a sua forma de dupla hélice. Essa descoberta, devidamente celebrada neste seu cinquentenário, abriu as portas para a manipulação direta dos genes, que hoje começa a dar frutos.
O século 21 promete ser o século da genética, em particular da engenharia genética. Dos alimentos transgênicos aos clones animais, estamos presenciando o despertar de uma nova ciência que, como é de praxe com descobertas revolucionárias, vem acompanhada de muitas promessas e medos. Ao estendermos a engenharia genética aos humanos, estamos pondo em xeque não só a sua capacidade de curar (ou prevenir) várias doenças como, também, de redefinir o que significa ser humano em um contexto no qual seres podem, ao menos em princípio, ser fabricados.
Mas a estrutura do DNA não foi a única grande descoberta em bioquímica realizada em 1953. Os americanos Harold Urey e Stanley Miller tentaram algo ainda mais ambicioso: fabricar a vida, ou ao menos alguns de seus ingredientes básicos, no laboratório. A origem da vida na Terra era (e ainda é) um grande mistério. E não é para menos. Em sua essência, seres vivos são conjuntos de macromoléculas orgânicas de grande complexidade, capazes de realizar uma série de operações e transformações químicas que levam à sua subsistência (alimentação) e à sua reprodução.
De alguma forma, moléculas inertes, quando combinadas a um certo nível de complexidade, se transformam em seres vivos. A questão é como se dá esta combinação, ou melhor, como o simples se torna complexo e, eventualmente, vivo.
Urey e Miller partiram do princípio de que a composição química da Terra primordial era simples. A sua idéia era reproduzir o ambiente de então no laboratório, tentando gerar moléculas orgânicas complexas a partir de moléculas simples. Vem à mente o popular jogo infantil Lego, no qual pequenos blocos, quando conectados de forma correta, produzem estruturas arbitrariamente complexas.
Urey e Miller sugeriram que, se os compostos químicos simples funcionavam como os blocos de Lego, a eletricidade existente na Terra primordial seria a força que fundiria o simples em complexo (equivalente, de certa forma, à inteligência da pessoa que cria as estruturas com Legos, a faísca criadora). Essa eletricidade primordial era consequência da intensa atividade atmosférica da época, que gerava um número enorme de relâmpagos.
A questão era quais elementos químicos deveriam ser usados. Afinal, a receita certa depende do conhecimento das condições da Terra quando ela tinha em torno de 1 bilhão de anos, algo nada trivial. As pistas deixadas dessa época são poucas e eram ainda mais escassas em 1953.
Urey e Miller supuseram que a sopa primordial fosse composta de água, metano, dióxido de carbono e amônia, ou seja, uma mistura de compostos simples contendo os átomos mais essenciais da bioquímica, hidrogênio, carbono, oxigênio e nitrogênio.
Os relâmpagos foram simulados por descargas elétricas, que eram ativadas periodicamente. Após alguns dias, uma análise da mistura acusou a presença de aminoácidos, compostos orgânicos complexos encontrados em todos os seres vivos na Terra, os blocos que compõem as proteínas. Uma década após o experimento de Urey e Miller, cientistas usando processos semelhantes sintetizaram as bases nitrogenadas (ou nucleotídeos) da molécula de DNA.
Esses experimentos, embora tenham provado que é possível sintetizar moléculas complexas a partir de outras mais simples, estão longe de sintetizar um ser vivo ou mesmo uma molécula de DNA. Críticos argumentam que o ambiente na Terra primordial era muito diferente e talvez impróprio à geração de moléculas complexas.
Recentemente, cientistas da Nasa mostraram que resultados semelhantes podem ocorrer no espaço, onde eletricidade é substituída por radiação ultravioleta, proveniente de estrelas. Nesse caso, as moléculas que deram origem à vida na Terra seriam provenientes do espaço, transportadas por asteróides e cometas. O debate continua: no espaço ou na Terra, o enigma da origem da vida permanece.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Cinquenta anos de "vida" no laboratório
MARCELO GLEISERespecial para a Folha de S.Paulo
O ano de 1953 foi notável para a biologia. James Watson e Francis Crick apresentaram seus resultados sobre a estrutura da molécula de DNA, revelando a sua forma de dupla hélice. Essa descoberta, devidamente celebrada neste seu cinquentenário, abriu as portas para a manipulação direta dos genes, que hoje começa a dar frutos.
O século 21 promete ser o século da genética, em particular da engenharia genética. Dos alimentos transgênicos aos clones animais, estamos presenciando o despertar de uma nova ciência que, como é de praxe com descobertas revolucionárias, vem acompanhada de muitas promessas e medos. Ao estendermos a engenharia genética aos humanos, estamos pondo em xeque não só a sua capacidade de curar (ou prevenir) várias doenças como, também, de redefinir o que significa ser humano em um contexto no qual seres podem, ao menos em princípio, ser fabricados.
Mas a estrutura do DNA não foi a única grande descoberta em bioquímica realizada em 1953. Os americanos Harold Urey e Stanley Miller tentaram algo ainda mais ambicioso: fabricar a vida, ou ao menos alguns de seus ingredientes básicos, no laboratório. A origem da vida na Terra era (e ainda é) um grande mistério. E não é para menos. Em sua essência, seres vivos são conjuntos de macromoléculas orgânicas de grande complexidade, capazes de realizar uma série de operações e transformações químicas que levam à sua subsistência (alimentação) e à sua reprodução.
De alguma forma, moléculas inertes, quando combinadas a um certo nível de complexidade, se transformam em seres vivos. A questão é como se dá esta combinação, ou melhor, como o simples se torna complexo e, eventualmente, vivo.
Urey e Miller partiram do princípio de que a composição química da Terra primordial era simples. A sua idéia era reproduzir o ambiente de então no laboratório, tentando gerar moléculas orgânicas complexas a partir de moléculas simples. Vem à mente o popular jogo infantil Lego, no qual pequenos blocos, quando conectados de forma correta, produzem estruturas arbitrariamente complexas.
Urey e Miller sugeriram que, se os compostos químicos simples funcionavam como os blocos de Lego, a eletricidade existente na Terra primordial seria a força que fundiria o simples em complexo (equivalente, de certa forma, à inteligência da pessoa que cria as estruturas com Legos, a faísca criadora). Essa eletricidade primordial era consequência da intensa atividade atmosférica da época, que gerava um número enorme de relâmpagos.
A questão era quais elementos químicos deveriam ser usados. Afinal, a receita certa depende do conhecimento das condições da Terra quando ela tinha em torno de 1 bilhão de anos, algo nada trivial. As pistas deixadas dessa época são poucas e eram ainda mais escassas em 1953.
Urey e Miller supuseram que a sopa primordial fosse composta de água, metano, dióxido de carbono e amônia, ou seja, uma mistura de compostos simples contendo os átomos mais essenciais da bioquímica, hidrogênio, carbono, oxigênio e nitrogênio.
Os relâmpagos foram simulados por descargas elétricas, que eram ativadas periodicamente. Após alguns dias, uma análise da mistura acusou a presença de aminoácidos, compostos orgânicos complexos encontrados em todos os seres vivos na Terra, os blocos que compõem as proteínas. Uma década após o experimento de Urey e Miller, cientistas usando processos semelhantes sintetizaram as bases nitrogenadas (ou nucleotídeos) da molécula de DNA.
Esses experimentos, embora tenham provado que é possível sintetizar moléculas complexas a partir de outras mais simples, estão longe de sintetizar um ser vivo ou mesmo uma molécula de DNA. Críticos argumentam que o ambiente na Terra primordial era muito diferente e talvez impróprio à geração de moléculas complexas.
Recentemente, cientistas da Nasa mostraram que resultados semelhantes podem ocorrer no espaço, onde eletricidade é substituída por radiação ultravioleta, proveniente de estrelas. Nesse caso, as moléculas que deram origem à vida na Terra seriam provenientes do espaço, transportadas por asteróides e cometas. O debate continua: no espaço ou na Terra, o enigma da origem da vida permanece.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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