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24/07/2003 - 07h27

Cassino do Rio batiza novo tipo de estrela

SALVADOR NOGUEIRA
da Folha de S.Paulo, no Rio

Num filme da série "Jornada nas Estrelas", um vilão usa um torpedo modificado para fazer uma estrela implodir subitamente, antes de esgotar seu combustível. Até anteontem, isso não passava de fantasia, mas um novo estudo sugere que há algo no Universo capaz de matar uma estrela. E, por uma série de coincidências históricas, os restos desses astros assassinados vão ganhar o nome de um velho cassino carioca.

O trabalho será apresentado hoje por Remo Ruffini, da Universidade de Roma, na Itália, durante a 10ª Reunião Marcel Grossmann de Relatividade Geral, conferência internacional no Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio.

Ontem, o pesquisador trabalhava furiosamente para refazer as transparências de sua apresentação e reescrever parte do artigo, que será em breve submetido a uma revista especializada. Os dados finais que permitiram a confirmação da descoberta só chegaram ao grupo dele um dia antes.

Além de ser uma descoberta importante para a astrofísica, o estudo também é um marco para a ciência brasileira. Por ter sido parcialmente conduzido no país, ele é o primeiro artigo a levar o nome da instituição recém-criada pelo governo federal para estudos dessa categoria, o Instituto Nacional de Cosmologia, Relatividade e Astrofísica (Icra BR).

Rajada mortal

O fator decisivo para a descoberta foi a observação de um grande evento cósmico no dia 29 de março --um dos famosos disparos de raios gama, as radiações mais energéticas do Universo.

Um estudo publicado há um mês na revista "Nature" usou essas mesmas observações para ligar as misteriosas e intensas rajadas às supernovas, nome dado ao colapso de estrelas muito maciças, prestes a virar buracos negros (objetos tão densos que nem a luz escapa deles).

Os autores desse estudo interpretaram a observação do disparo de raios gama e a subsequente assinatura da supernova como traços vindos de um mesmo objeto. Ruffini e seus colegas acreditam que sejam dois astros distintos. "Na verdade o disparo de raios gama é o pai, o causador da supernova, e não o filho, o efeito dela."

Para Ruffini, os geradores dos disparos de raios gama são os chamados buracos negros silenciosos, que se formam a partir de estrelas que entram em colapso, mas que não produzem as violentas explosões típicas das supernovas. O disparo de raios gama, então, atinge uma estrela vizinha, que é afetada pelo evento de tal forma que entra em colapso e, em questão de minutos, explode numa supernova e se transforma numa estrela de nêutrons.

Esse processo de formação de uma estrela de nêutrons foi detalhado pelo russo-americano George Gamow (1904-1968) e pelo brasileiro Mário Schenberg (1914-1990) na década de 1940.

Trabalhando juntos, eles demonstraram como essa estrela perde parte de sua energia conforme neutrinos (partículas muito pequenas, de carga neutra) são expelidos do núcleo em ritmo impressionante, causando um rápido esfriamento do objeto. O fenômeno acabou indo para a literatura científica batizado de "processo Urca", numa história típica do espirituoso Gamow.

O conto do cassino

Certa feita, o russo-americano e o brasileiro estavam reunidos no cassino da Urca, no Rio, e a dupla falava animadamente sobre seu trabalho conjunto, para a insatisfação da mulher de Gamow.

Para se livrar da cara feia da mulher, entediada com a conversa dos físicos, Gamow deu a ela dinheiro para ir jogar no cassino. Dali a pouco ela estava de volta --o dinheiro havia acabado. O físico cedeu mais uns tostões, que renderam mais alguns minutos de sossego, mas o processo voltou a se repetir de novo e de novo.

Perspicaz, Gamow sugeriu que "processo Urca" seria uma boa forma de definir o que eles estavam discutindo, pois uma estrela de nêutrons, ao se formar, perdia energia assim como a sra. Gamow perdia dinheiro no cassino.

O trabalho de Ruffini é o primeiro a confirmar com observações as previsões do processo Urca, com dois objetos diferentes. O mais recente --que ofereceu as confirmações à hipótese do italiano-- foi o de 29 de março. O outro tem pouco mais de quatro anos. Para o pesquisador, nada mais natural que batizar essas duas estrelas de nêutrons como Urca-1 e Urca-2, uma nova classe de fenômeno astronômico.

Participação brasileira

O estudo do italiano, que obteve seus últimos resultados no Brasil, leva também a assinatura do Icra BR, cuja criação foi anunciada pelo ministro Roberto Amaral (Ciência e Tecnologia) na última segunda-feira. O centro é o braço nacional do Centro Internacional para Astrofísica Relativística, organização que congrega pesquisadores de vários países, como Itália, Austrália, Estados Unidos, Rússia, França, China e Chile.

A idéia é permitir que todos os participantes tenham acesso ao conhecimento produzido na área, na forma da Icranet, de modo a estimular a cooperação em áreas teóricas da mesma maneira em setores como o espacial. "Trata-se de um novo conceito de trabalho", diz Ruffini, um dos entusiastas do projeto.

O Icra BR será montado no próprio CBPF e terá recursos vindos da Comunidade Européia, e apoio do Icra, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) e dos governos da Itália, da Armênia e do Vaticano.
 

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