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17/08/2003 - 04h17

Risco em rede

ALESSANDRO GRECO
free-lance para a Folha de S.Paulo

Dois anos após a morte de Cristo, Paulo se tornou seu apóstolo e peregrinou pelo mundo semeando as bases do cristianismo. Andou milhares de quilômetros e, no fim da vida, havia conseguido converter milhares de pessoas ao catolicismo. Em fevereiro de 2000, o adolescente canadense conhecido como MafiaBoy conseguiu paralisar alguns dos maiores sites da internet, incluindo Yahoo, Amazon e eBay, com seu computador ligado à rede.

Os dois fatos têm mais relação do que se poderia imaginar lendo-os um em seguida do outro. Eles só puderam ocorrer porque estamos todos conectados a uma rede de relações sociais, tecnológicas e biológicas com algumas características comuns. Até recentemente essas propriedades eram difíceis de estudar pela ciência, mas, com a chegada de computadores velozes a preços acessíveis, nos anos 90, elas se tornaram uma área disputada de estudo e foram batizadas de ciência da rede.

Dois livros lançados nos EUA mostram que a nova ciência pode ser aplicada a virtualmente todas as áreas do conhecimento e que entendê-la não é só brincadeira acadêmica, mas uma das melhores ferramentas para acelerar as descobertas da ciência. "Linked" (Conectados), do físico húngaro radicado nos EUA Albert-Lázsló Barabasi, e "Six Degrees" (Seis Graus), do sociólogo americano Duncan Watts, mostram como a ciência das redes tem ajudado a pesquisa a avançar (muito).

Para entender a nova disciplina das redes, é necessário deixar de lado a idéia central da ciência moderna de que o diabo está nos detalhes e de que entendê-los permite compreender o mundo. Tal abordagem tem sido útil para, por exemplo, criar novas drogas contra doenças, mas falha ao não contemplar a noção central da ciência da rede de que o demônio se esconde é nas relações -na complexidade das interações entre pessoas, aviões, computadores, moléculas.

E que o resultado dessas interações gera comportamentos que uma pessoa, avião, computador ou molécula, sozinhos, não teriam -portanto, estudar cada um desses comportamentos individualmente de nada adianta, pois eles pouco dizem sobre suas ações em conjunto. Em "Linked", Barabasi explica, por exemplo, como a ciência das redes é capaz de entender o sucesso de Paulo em sua pregação e o de MafiaBoy em seu ataque (não, não foi porque ele era um hacker de alto nível). E também por que é mais eficiente, do ponto de vista científico, tratar com um remédio contra Aids pessoas com muitos parceiros sexuais e não uma mulher grávida que tenha a mesma doença.

No cerne das explicações está o fato de que todas as redes -sejam elas de computadores, pessoas, empresas ou moléculas- são fruto de uma rede intrincada de ligações. A vida é fruto da interação de uma complexa rede de moléculas dentro das células. A economia é uma rede complexa de empresas e consumidores. A sociedade é uma rede complexa de pessoas conectadas por laços de família, amizade e trabalho. A internet é uma teia complexa de computadores conectados por fios.

Centros de distribuição

Boa parte dessas redes tem, por improvável que pareça, uma característica comum: quem entra tende a se conectar a quem já é mais conectado, como se ele fosse um centro de distribuição. A propriedade parece trivial, mas tem consequências sérias para o dia-a-dia.

Dificilmente reparamos nela mesmo quando aparece diante dos nossos olhos, ao entrarmos num avião e abrirmos uma revista de bordo. Nessas revistas sempre há um desenho com os aeroportos para os quais as companhias voam.

Olhe com cuidado, e você vai perceber que a maioria dos aeroportos tem poucos aviões saindo ou chegando, enquanto alguns poucos, como Congonhas e Cumbica, em São Paulo, e Santos Dumont e Galeão, no Rio, têm muitas aeronaves indo e vindo entre eles e para diversas outras cidades do Brasil.

Os aeroportos de São Paulo e Rio funcionam como centros de distribuição. Uma paralisação simultânea de ambos seria o pesadelo de qualquer controlador de tráfego aéreo e emperraria todo o sistema aéreo brasileiro. O mesmo não aconteceria se os aeroportos parados fossem quaisquer cinco aeroportos menores espalhados pelo Brasil. O sistema como um todo absorveria o impacto e continuaria funcionando.

Foi um modelo similar que Barabasi simulou no computador, para um hoje famoso artigo publicado na revista "Nature" em 2001. Nele, mostrou que a World Wide Web (ou WWW) -e o mesmo é válido para os aeroportos- é capaz de absorver sem problemas falhas aleatórias (cinco pequenos aeroportos parados). Já se alguém fizer um ataque dirigido aos centros de distribuição (o equivalente dos aeroportos de São Paulo e Rio), tirar a WWW do ar é relativamente fácil. Mas por que hackers nunca tentaram atacar, por exemplo, nos Estados Unidos, o país mais conectado do mundo? "Se eles tirarem a internet do ar, estão tirando de si mesmos seu brinquedo favorito" , disse Barabasi à Folha.

O mais surpreendente é que os sistemas complexos da natureza funcionam de forma similar à malha de aviões e à WWW. A todo momento, centenas de moléculas do corpo ficam doidas e deixam de cumprir sua função original.

O motivo pelo qual continuamos vivos por anos e anos é que a rede dentro da célula é dominada por "centros de distribuição" -as falhas aleatórias têm pouco efeito. Mas, se alguém fosse capaz de destruir as moléculas que servem de centros de distribuição, o resultado seria rápido e mortal. O avanço no entendimento das redes deve trazer uma revolução na ciência que transformou a segunda metade do século 20, a biologia.

Graças a ela temos hoje a lista dos genes humanos, mas continuamos a saber pouco sobre o funcionamento de uma célula. Conhecemos seus componentes, mas não entendemos como a vida emerge das interações entre milhares de moléculas. A ciência das redes está mapeando as interações entre as moléculas dentro da célula e vai ajudar a desvendar, por exemplo, o que são as doenças. "A maioria das doenças não é causada por um simples gene defeituoso, mas fruto da interação e do mau funcionamento de vários genes e seus produtos", diz Barabasi.

O exemplo mais conhecido é a famosa molécula p53. Muitos pacientes com câncer têm uma mutação que impede a p53 de fazer o seu serviço de mantenedora da ordem dentro da célula, garantindo que ela permaneça funcionando normalmente. A p53 sozinha não é responsável pelo câncer; só a interação de uma p53 mutante com outras proteínas resultantes de genes defeituosos leva ao câncer. A necessidade de entender os efeitos de rede aparece também no estudo da proliferação dos vírus de computador e de doenças como a Aids.

Em 2001, os físicos Alessandro Vespignani e Romualdo Pastor Satorras provaram que, em redes com alguns centros de distribuição, os vírus podem se espalhar indefinidamente. Ou seja: não importa quão contagioso o vírus, há uma grande chance de ele alcançar todos nós. O mesmo raciocínio vale para entender por que Paulo foi tão bem sucedido em sua pregação (ele era um centro de distribuição) e por que MafiaBoy causou um estrago tão grande (ele atacou os centros de distribuição Yahoo, Amazon, eBay).

No mesmo ano, o sociólogo Fredrik Liljeros mostrou que a rede de relações sexuais é também dominada por centros de distribuição. Nela, algumas poucas pessoas têm centenas de parceiros sexuais. São eles, centros de distribuição, os primeiros a serem infectados, exatamente por terem muito contato sexual. Consequentemente, transmitem a doença para centenas de outras pessoas. "Essa descoberta explica por que um vírus pouco infeccioso como o da Aids atingiu uma percentagem tão grande da população humana", diz Barabasi.

Promíscuos prioritários

No ano passado, uma conclusão cruel, mas verdadeira, veio à tona em dois artigos, um de Zoltán Dezsó (aluno de doutorado de Barabasi) e outro de Vespignani e Pastor Satorras. Ela indica que, quando há tratamento para uma doença infecciosa como a Aids, mas não há dinheiro suficiente para tratar todo mundo, deveríamos dar o remédio primeiro para os centros de distribuição.

Quanto mais centros forem tratados, maior a chance de brecar a disseminação do vírus. De forma crua: entre dar o remédio a uma mulher grávida com Aids ou a um homem/mulher com muitos parceiros sexuais, é mais eficiente tratar o segundo grupo, como forma de combate à disseminação da doença.

Outra característica das redes, tornada famosa pelo dramaturgo John Guare em seu livro "Six Degrees of Separation" (Seis Graus de Separação), é a idéia de que cada um de nós está a somente seis apertos de mão de qualquer um dos 6 bilhões de habitantes da Terra. Watts decidiu testar se isso seria verdade também em outras redes. Ele e colegas descobriram que redes tão diversas como a WWW, os neurônios do organismo e os atores de Hollywood têm a mesma propriedade da rede social que nos une.

Todas elas fazem parte do fenômeno chamado pelos cientistas de "mundo pequeno". Nele, estamos todos a uma pequena distância de nossos pares de rede. E pouco importa se a rede é o bilhão de páginas da WWW ou os 500 mil atores de Hollywood. Um página da WWW está a somente 19 cliques de qualquer outra e um ator está a três apertos de mão de seus colegas.

Todos fazemos parte, queiramos ou não, de várias redes. Chegando ao final do texto, você entrou para mais uma: a dos leitores desta reportagem.
 

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