Certa vez
ouvi uma explicação aparentemente machista sobre
uma das razões da piora do ensino público: a
abertura do mercado de trabalho para as mulheres, antigamente
condenadas a ter poucas opções caso não
quisessem ficar trancadas em casa. Uma das opções
era dar aula. Faz algum sentido.
Jovens inteligentes e cultas, dispostas a aprender, muitas
delas bilíngues, viam na sala de aula um escape para
não ficar apenas na rotina da casa, cuidando dos filhos
e do marido; hoje, elas estão comandando empresas,
meios de comunicação, governos. No final, os
alunos mais pobres eram os grandes beneficiários daqueles
talentos represados.
O Ibope faz um acompanhamento periódico dos valores
e atitudes das mulheres. Em suma, na última pesquisa,
em 2008, as mulheres estão ainda mais exigentes em
relação ao trabalho. Entre as classes A e B,
elas querem desenvolvimento intelectual e pessoal, destaque
profissional e independência.
Na semana passada, o governo federal lançou um bilionário
programa para estimular a formação de professores
-não apenas o sucesso do plano, mas o futuro do país
está atrelado à capacidade de atrair os talentos
para as escolas públicas.
O Datafolha realizou um perfil sobre as expectativas dos
jovens brasileiros, reforçando as tendências
verificadas pelo Ibope: para os entrevistados de 16 a 17 anos,
de maior escolaridade, não basta ter emprego. É
preciso ser reconhecido e valorizado profissionalmente, com
possibilidades de reciclagem. Como fazer esse pessoal se sentir
tentado a sonhar em dar aulas na rede pública?
Não consigo ver um problema tão difícil
(e tão relevante) para ser resolvido: estamos metidos
num círculo vicioso. As nações que mais
evoluíram socialmente são aquelas que melhor
souberam atrair talentos para disseminar conhecimento.
O plano anunciado pelo governo prevê uma série
de estímulos, como mais vagas nos cursos de licenciatura
e ajuda para pagamento de mensalidade -além de provas
para evitar que gente com baixíssima qualificação
nem sequer consiga se candidatar a dar aula.
É algo que vai ao encontro do projeto lançado
em São Paulo, em que se determinou que, mesmo aprovado
em concurso, o professor terá de ficar um semestre
se preparando antes de entrar na sala de aula.
Até agora, porém, não existe quase nenhum
atrativo para um jovem de elite trabalhar numa escola pública.
O pior não é o salário -apesar de um
professor ter a mais baixa remuneração entre
os que têm diploma superior. Isso, por si só,
já seria um gigantesco obstáculo.
Vida de professor de escola pública é um massacre
diário, especialmente nas grandes cidades. As salas
são superlotadas, boa parte dos alunos tem doenças,
inclusive mentais, os laboratórios não funcionam,
os pais se envolvem pouco na educação dos filhos,
cujo repertório cultural é, geralmente, baixo.
Existem as mais variadas formas de violência -do xingamento
às agressões físicas. O sistema de aulas
dissertativas é insuportável para quem gosta
de criatividade e inovação.
Os alunos pouco aprendem, o que significa uma sensação
coletiva de fracasso. Logo, o professor terá uma doença
ou desequilibro emocional.
No momento em que se modificarem os salários e as
condições de trabalho, naturalmente se vão
atrair os talentos. Já existem centenas de milhares
de jovens brasileiros que trabalham voluntariamente, com educação
pública, atuando em organizações não
governamentais -e a maioria dos que não são
voluntários movem-se por idealismo e prazer de ensinar.
Muitos deles foram bons alunos nas melhores faculdades.
Há uma enorme coleção de resultados extraordinários
no país, graças a esses jovens. É gente
que tem na veia o prazer de fazer a diferença, mas
sabe que sucumbiria dentro de uma escola pública.
O desafio brasileiro é saber quando (e se) dar aula
na escola pública fará parte dos sonhos -se
não fizer, também não se poderá
sonhar com um outro país.
PS - Só aumentar salário não funciona.
Os professores da rede municipal da cidade de São Paulo
ganharam aumentos salariais, convertidos em propaganda durante
a campanha eleitoral no ano passado. Mas a nota dos alunos
das 5ª e 8ª séries não acompanhou
o movimento. Pelo contrário: o que já era muito
ruim conseguiu ficar pior. A inevitável pergunta é
a seguinte: aumentar o salário dos professores necessariamente
melhora o desempenho dos alunos?
A nota dos alunos de São Paulo apenas confirma o que
se constatou em várias partes e desmontam os argumentos
dos sindicatos -não há relação
direta entre mais dinheiro no bolso do professores e melhor
desempenho dos alunos.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, editoria Cotidiano.
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