REFLEXÃO


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folha de s.paulo
25/05/2009

Até onde vai o câncer da Dilma?

Ela provavelmente vai ser, na política, o exemplo de resiliência que Ronaldo se tornou, até aqui, no futebol


No dia 2 de janeiro de 1996, uma tarde chuvosa, um caminhão matou o pai, a mãe e o único irmão da jornalista Lina de Albuquerque. Sua dor acabou numa curiosidade sobre pessoas que aprendem a recomeçar a vida. A curiosidade se transformou agora no relato de 26 pessoas, entre anônimos e famosos, que contam como superaram o que, por um tempo, parecia insuperável.

A leitura das histórias do livro "Recomeços", lançado por Lina, dá uma pista sobre o que espera a ministra Dilma Rousseff caso ela consiga superar o câncer e manter sua candidatura à Presidência.

Ela provavelmente vai ser, na política, o exemplo de resiliência que Ronaldo se tornou, até aqui, no futebol, e João Carlos Martins, na música -o apreço por seres resilientes (resiliência é a propriedade física de os materiais voltarem ao estado natural depois de um choque) é tão forte na opinião pública que erros cometidos no passado são esquecidos.

No livro, com 26 histórias de vida, Lily Marinho fala sobre a morte de um filho e de um casamento com uma velha paixão -o jornalista Roberto Marinho, então com 88 anos. Bárbara Paz conta como ficou desfigurada por causa de um acidente que deixou marcas profundas em seu rosto e cortou sua trajetória de modelo. Lucinha Araújo revela sua estratégia para lidar com a morte de Cazuza, seu filho.

Paulo Borges, o inventor da São Paulo Fashion Week, mostra como recomeçou ao adotar uma criança -e todas as dificuldades em torno dessa adoção. Rita Cadillac, a ex-chacrete, dá detalhes sobre como, depois de uma série de desilusões amorosas, se casou com um homem bem mais jovem, amigo de seu filho.

Não são relatos de autoajuda nem desabafos. Ninguém está reclamando de nada, sentindo-se vítima nem se vangloriando de coragem ou de ser uma fortaleza. Apenas contam sobre recomeços.

Impossível não sentir a afinidade com os personagens, da sofisticada e cosmopolita Lily Marinho à debochada Rita Cadillac -e aqui entra, involuntariamente, Dilma e seu projeto presidencial.

O que me levou ao livro é minha convicção de que as escolas deveriam trabalhar com seus alunos exemplos de resiliência, como antídoto ao clima de "tanto faz" que se dissemina entre boa parte das crianças e adolescentes de classe média e alta -é a geração sem limites.

A leitura imediatamente, porém, me remeteu a Dilma, vendo-a como mais um daqueles personagens com uma história para contar.

Há pudores sobre tratar abertamente o câncer e a candidatura da ministra, que, na semana passada, viu seu nome passar dos 20% de preferência do eleitor, segundo pesquisas ainda reservadas.

Mas o fato é o seguinte: se o câncer for derrotado (o que é uma possibilidade razoável, segundo especialistas), a ministra ganha uma extraordinária vantagem eleitoral. Nenhuma doença é, hoje, mais acompanhada no Brasil, gerando uma empatia coletiva.

Até agora, ela vem se comportando com elegância e dignidade -o que lhe atrai simpatias além de questões políticas e partidárias.

De certa forma, ela se equipara a Lula. Se Lula se aproveitou da imagem de que veio da miséria e soube superá-la, Dilma será cercada pela auréola heroica de que soube recomeçar. É algo que, eleitoralmente, tem muito mais apelo do que a imagem da fria técnica que conduz um plano de investimentos -um plano, aliás, que está mais no palanque do que nas ruas.

Não estou dizendo aqui que Dilma vai montar uma estratégia de marketing tirando proveito da desgraça. Nem precisa. Não haverá um único dia sem que sua doença não seja exposta e analisada, entre as idas e vindas ao hospital, além do acompanhamento de sua agenda.

Talvez num país mais racional, menos emotivo, a maioria das pessoas avaliasse que seria um risco eleger alguém que teve uma doença tão grave. Mas o Brasil é um país emotivo. Ela será apresentada como alguém que, apesar de tudo, não parou de trabalhar pelo país.

Isso somado ao fato de ser mulher e, especialmente, ter o apoio de alguém hábil em manipular as emoções como Lula, que, como sabemos, soube recomeçar várias vezes -e soube também fazer marketing desses recomeços.


PS - Coloquei neste link trechos de algumas histórias de vida do livro "Recomeços". Aliás, impagável a frase com que Rita Cadillac termina seu depoimento: "Quando eu morrer, quero ser enterrada de bruços". É uma brincadeira com Rita Lee, que, certa vez, disse que a ex-chacrete era a "única bunda pensante do Brasil".


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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