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REFLEXÃO


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folha de s.paulo
19/06/2006
O software do prazer de Bill Gates

Quase ninguém admite, mas dedicar-se à filantropia produz satisfação comparável ao sucesso profissional


Com uma fortuna de US$ 50 bilhões e apenas 50 anos de idade, Bill Gates anunciou, na semana passada, a sua aposentadoria da Microsoft para se dedicar a ações filantrópicas: está mais obcecado por enfrentar a miséria da África, ajudando a criar novos medicamentos, do que em vender mais programas de computador. A decisão atraiu as mais diversas especulações sobre essa aposentadoria precoce. Dizem até, maldosamente, que ele vai deixar o mercado para sair por cima e não ser derrotado por competidores emergentes.

A partir de minha observação profissional nos últimos 20 anos de voluntários dentro e fora do Brasil, alguns deles poderosos empresários e executivos dedicados a questões sociais, arrisco dar um palpite sobre o software íntimo de Bill Gates: ele está buscando apenas e simplesmente o prazer.
Quase ninguém admite publicamente -e nem em privado-, mas dedicar-se à filantropia produz satisfação tão grande ou maior do que o sucesso profissional. Não é desprendimento ou bondade, mas egoísmo. Um egoísmo saudável, mas egoísmo.

Bill Gates é um reflexo de um dos traços mais interessantes dos Estados Unidos: a responsabilidade comunitária de sua elite econômica. Todos os grandes magnatas americanos, por mais inescrupulosos que tenham sido para amealhar suas fortunas, também foram grandes doadores -e por isso, mais do que pelos seus próprios negócios, ficaram na história.

O nome deles está em todas partes: museus, universidades, bibliotecas, parques, laboratórios, escolas públicas, creches, asilos, salas de concerto. Atinge-se, dessa forma, o sonho tão humano da imortalidade. Peguemos um exemplo local. O império dos Diários Associados desmoronou, mas seu fundador, o controvertido Assis Chateaubriand, sempre será lembrado pelo Masp. É como serão lembrados, entre outros, os Jafet e os Cutait por um hospital como o Sírio-Libanês, os Feffer pelo Hospital Albert Einstein, os Ermírio de Moraes pela Beneficência Portuguesa, Ciccilo Matarazzo e os Nemirovsky pela doação de seu acervo de quadros ao Museu de Arte Contemporânea e à Estação Pinacoteca, Amador Aguiar por uma rede de escolas públicas mantidas pelo banco que criou.

Nunca mais me esqueci de um detalhe de meus passeios quando morava em Nova York. Uma milionária americana (Lila Wallace) deixou um fundo financeiro, cujos juros deveriam ser usados apenas para trocar as exuberantes flores da entrada do Metropolitan Museum of Art. Haveria gesto de maior egoísmo e prazer do que planejar viver eternamente na forma de flores em um dos mais visitados museus do mundo?

Está nisso o grande prazer: a chance de dialogar, através do conhecimento, seja científico ou cultural, com a imortalidade. É como se os indivíduos conseguissem (até certo ponto conseguem) escapar das limitações mortais e permanecessem lembrados, para sempre, pelos avanços da humanidade. É como se, nesse diálogo com o futuro, se transformassem em divinos pela capacidade de gerar vida.

Uma das medidas do sucesso está na capacidade de o indivíduo não precisar se preocupar apenas com seus interesses e os de seus familiares. Já tem dinheiro suficiente, tempo disponível e, acima de tudo, já percebeu a fugacidade da glória terrena, para se dedicar à sua comunidade. Seja essa comunidade do tamanho que for: no caso de Bill, ela tem o tamanho da África, o maior desafio planetário, onde a expectativa de vida tem baixado.

São pessoas extremamente bem-sucedidas e privilegiadas que perceberam que sua fonte de prazer não está só no efêmero. Aprendi, porém, que esse privilégio não depende apenas de poder e dinheiro. Vi como pessoas humildes, sem posses, dedicam-se aos outros e usufruem desse prazer de se sentirem criadoras de vida. Não são pessoas melhores nem superioras nem mais bondosas do que as outras que só cuidam de si próprias. Apenas tiveram, sejam ricas ou pobres, a chance de buscar prazeres mais profundos. Se Bill Gates tiver o desempenho social que conseguiu na atividade comercial, quando ele se despedir não do trabalho mas da vida, a Microsoft (isso se até lá ainda existir) será apenas um detalhe na sua biografia. Saborear esse prazer da imortalidade é o que está por trás da aposentadoria precoce de Bill Gates -e revela um software do prazer.

P.S. - Acabamos de ver um interessante exemplo no Brasil. Apesar das várias e polpudas propostas comerciais que recebeu, José Mindlin decidiu que toda a sua biblioteca, composta de livros raros, vai para a Universidade de São Paulo. Ele, que é candidato à Academia Brasileira de Letras, tornou-se imortal com o gesto. O contrário seria a pobreza: seus livros espalhados pelo mundo e sua paixão esquecida. O bom disso é que tais gestos acabam servindo de padrão do que é ser alguém bem-sucedido, gerando um enriquecimento em toda a comunidade. Não é para quem quer, mas para quem pode. Pobre, de fato, é aquele que só consegue viver seguindo as suas necessidades.

Bill Gates demonstra interesse em investir na cidade de São Paulo

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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