O terceiro
setor se transformou numa ponte para a participação
pública, longe da política tradicional
Uma das referências mundiais na medicina, Adib Jatene
ajudou a idealizar, na década de 1970, o HCor (Hospital
do Coração) de São Paulo, movido pelo
sonho de criar um centro de excelência em cardiologia.
O projeto não passaria de um delírio não
fossem as doações da comunidade árabe.
Ao completar agora 30 anos, o HCor é reconhecido
como um centro de excelência, onde, desde a fundação,
Adib Jatene atua voluntariamente como diretor-geral, ou seja,
não ganha um centavo.
Estamos vivendo um momento trágico em que esse tipo
de ação exemplar começa a ficar generalizadamente
sob suspeita de irregularidades. Um dos sintomas disso é
a CPI que investiga o chamado terceiro setor.
O Hcor, com Jatene, integra a lista de hospitais sem fins
lucrativos que tornaram desnecessária a viagem dos
brasileiros ao exterior para tratar da saúde. Assim
surgiram, em São Paulo, hospitais como Albert Einstein,
Sírio-Libanês, Oswaldo Cruz e Samaritano, que,
bancados respectivamente com dinheiro das comunidades judaica,
árabe, alemã e inglesa, transformaram-se em
pólos de inovação tecnológica
-esses hospitais dedicam-se não só ao tratamento
mas também à pesquisa.
A qualidade de seus serviços revela o extraordinário
poder terapêutico do capital social, uma riqueza que
se mede pela disposição dos indivíduos
de aceitar desafios em conjunto e tirar sonhos do papel.
O capital social está por trás de siglas como
Apae ou AACD, entre as inúmeras iniciativas responsáveis
pela promoção de direitos das crianças,
das mulheres, dos idosos, dos portadores de deficiências,
dos negros e dos trabalhadores. A ofensiva a favor da proteção
ecológica começou com entidades não-governamentais,
a exemplo da campanha contra a fome e contra a mortalidade
infantil.
A eficiência dessas iniciativas acabou por atrair centenas
de milhares de pessoas que gostariam de ter uma vida pública
sem participar dos partidos e de governos. Com essa combinação
de serviço público sem a lerdeza do serviço
público e de iniciativa privada sem preocupação
com o lucro, o terceiro setor se expandiu na década
de 1990. Calcula-se que existam hoje cerca de 350 mil entidades
não-governamentais.
Em meio a uma coleção de resultados em saúde,
educação e ecologia, entre outros, o terceiro
setor se transformou, para muita gente, especialmente para
os mais jovens, com vontade de fazer a diferença, numa
ponte para a participação pública, longe
da política tradicional.
Essa ponte agora está sob ameaça -e em boa
parte por causa justamente da calhordice da política
tradicional. Basta ver os casos na mira da chamada CPI das
ONGs.
É óbvio que uma expansão tão
rápida de tantas entidades não-governamentais
geraria instituições frágeis e despreparadas
para qualquer tarefa. Para muitas delas, havia uma ilusão
de que bastava ter uma boa idéia ou boa vontade, mesmo
sem profissionais qualificados para gerir um projeto. Reproduz-se
aqui a incompetência e a taxa de mortalidade existente
entre as pequenas empresas, na quais o indivíduo, desempregado,
torra, sem planejamento, sua poupança num pequeno negócio.
É óbvio também que, diante de tanta
gente de olho no prestígio das entidades filantrópicas,
alguns espertos viram uma oportunidade de aplicar pequenos
golpes. Muitas empresas enxergaram nas ações
filantrópicas apenas um golpe publicitário,
voltado para o marketing da responsabilidade social. Inevitavelmente,
esse universo de ações públicas teria
de ser mais bem investigado e disciplinado, por envolver desde
uma pequena entidade no interior do Nordeste, passando por
sindicatos, até igrejas e templos, tudo isso consumindo
bilhões de reais.
Mas o que está movendo a CPI das ONGs não são
os erros dos amadores ou os pequenos golpes que, diga-se,
são abundantes. São os grandes esquemas associados,
em sua maioria, aos partidos. As entidades que estão
na mira das investigações trazem a suspeita
de apadrinhamento político acima de critérios
técnicos e de servirem de fachada para caixa dois de
campanha eleitoral.
Mais do que os milhões desviados ou jogados fora por
incompetência, o custo maior é a contaminação
ainda maior da sociedade pelo cinismo. É uma desilusão
que, talvez, fizesse com que, hoje, Jatene não gastasse
seu tempo livre para criar um hospital-modelo, o maestro Baccarelli
não montasse, com apoio do empresário Antônio
Ermírio de Moraes, uma orquestra sinfônica numa
favela. Seria mais difícil surgirem AACD, Apae e os
centros de pesquisa dos hospitais Einstein e Sírio-Libanês.
Não teríamos a USP como a conhecemos, já
que aquela universidade, trazendo padrões de qualidade
desconhecidos no Brasil, foi resultado da articulação
da elite empresarial paulistana. Não teríamos
Masp, MAC e MAM -nem uma importante parte do acervo da Pinacoteca.
Imagine a cidade de São Paulo sem essas siglas para
avaliar o preço do cinismo -ou, por outro lado, a riqueza
do capital social.
PS - Se não virar um espetáculo de holofotes
e de picuinhas partidárias, a CPI terá um ótimo
papel para ajudar a disciplinar o terceiro setor e a sua relação
com os governos. Talvez convença os indivíduos
a não dar um centavo a entidades que não passem
por auditorias periódicas, não tenham suas contas
transparentes e não trabalhem com indicadores de desempenho.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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