REFLEXÃO


Envie seu comentário

 
 

folha de s. paulo
19/11/2007

Imagine São Paulo sem a USP e o Masp

O terceiro setor se transformou numa ponte para a participação pública, longe da política tradicional



Uma das referências mundiais na medicina, Adib Jatene ajudou a idealizar, na década de 1970, o HCor (Hospital do Coração) de São Paulo, movido pelo sonho de criar um centro de excelência em cardiologia. O projeto não passaria de um delírio não fossem as doações da comunidade árabe.

Ao completar agora 30 anos, o HCor é reconhecido como um centro de excelência, onde, desde a fundação, Adib Jatene atua voluntariamente como diretor-geral, ou seja, não ganha um centavo.

Estamos vivendo um momento trágico em que esse tipo de ação exemplar começa a ficar generalizadamente sob suspeita de irregularidades. Um dos sintomas disso é a CPI que investiga o chamado terceiro setor.

O Hcor, com Jatene, integra a lista de hospitais sem fins lucrativos que tornaram desnecessária a viagem dos brasileiros ao exterior para tratar da saúde. Assim surgiram, em São Paulo, hospitais como Albert Einstein, Sírio-Libanês, Oswaldo Cruz e Samaritano, que, bancados respectivamente com dinheiro das comunidades judaica, árabe, alemã e inglesa, transformaram-se em pólos de inovação tecnológica -esses hospitais dedicam-se não só ao tratamento mas também à pesquisa.

A qualidade de seus serviços revela o extraordinário poder terapêutico do capital social, uma riqueza que se mede pela disposição dos indivíduos de aceitar desafios em conjunto e tirar sonhos do papel.

O capital social está por trás de siglas como Apae ou AACD, entre as inúmeras iniciativas responsáveis pela promoção de direitos das crianças, das mulheres, dos idosos, dos portadores de deficiências, dos negros e dos trabalhadores. A ofensiva a favor da proteção ecológica começou com entidades não-governamentais, a exemplo da campanha contra a fome e contra a mortalidade infantil.

A eficiência dessas iniciativas acabou por atrair centenas de milhares de pessoas que gostariam de ter uma vida pública sem participar dos partidos e de governos. Com essa combinação de serviço público sem a lerdeza do serviço público e de iniciativa privada sem preocupação com o lucro, o terceiro setor se expandiu na década de 1990. Calcula-se que existam hoje cerca de 350 mil entidades não-governamentais.

Em meio a uma coleção de resultados em saúde, educação e ecologia, entre outros, o terceiro setor se transformou, para muita gente, especialmente para os mais jovens, com vontade de fazer a diferença, numa ponte para a participação pública, longe da política tradicional.

Essa ponte agora está sob ameaça -e em boa parte por causa justamente da calhordice da política tradicional. Basta ver os casos na mira da chamada CPI das ONGs.

É óbvio que uma expansão tão rápida de tantas entidades não-governamentais geraria instituições frágeis e despreparadas para qualquer tarefa. Para muitas delas, havia uma ilusão de que bastava ter uma boa idéia ou boa vontade, mesmo sem profissionais qualificados para gerir um projeto. Reproduz-se aqui a incompetência e a taxa de mortalidade existente entre as pequenas empresas, na quais o indivíduo, desempregado, torra, sem planejamento, sua poupança num pequeno negócio.

É óbvio também que, diante de tanta gente de olho no prestígio das entidades filantrópicas, alguns espertos viram uma oportunidade de aplicar pequenos golpes. Muitas empresas enxergaram nas ações filantrópicas apenas um golpe publicitário, voltado para o marketing da responsabilidade social. Inevitavelmente, esse universo de ações públicas teria de ser mais bem investigado e disciplinado, por envolver desde uma pequena entidade no interior do Nordeste, passando por sindicatos, até igrejas e templos, tudo isso consumindo bilhões de reais.

Mas o que está movendo a CPI das ONGs não são os erros dos amadores ou os pequenos golpes que, diga-se, são abundantes. São os grandes esquemas associados, em sua maioria, aos partidos. As entidades que estão na mira das investigações trazem a suspeita de apadrinhamento político acima de critérios técnicos e de servirem de fachada para caixa dois de campanha eleitoral.

Mais do que os milhões desviados ou jogados fora por incompetência, o custo maior é a contaminação ainda maior da sociedade pelo cinismo. É uma desilusão que, talvez, fizesse com que, hoje, Jatene não gastasse seu tempo livre para criar um hospital-modelo, o maestro Baccarelli não montasse, com apoio do empresário Antônio Ermírio de Moraes, uma orquestra sinfônica numa favela. Seria mais difícil surgirem AACD, Apae e os centros de pesquisa dos hospitais Einstein e Sírio-Libanês.

Não teríamos a USP como a conhecemos, já que aquela universidade, trazendo padrões de qualidade desconhecidos no Brasil, foi resultado da articulação da elite empresarial paulistana. Não teríamos Masp, MAC e MAM -nem uma importante parte do acervo da Pinacoteca. Imagine a cidade de São Paulo sem essas siglas para avaliar o preço do cinismo -ou, por outro lado, a riqueza do capital social.

PS - Se não virar um espetáculo de holofotes e de picuinhas partidárias, a CPI terá um ótimo papel para ajudar a disciplinar o terceiro setor e a sua relação com os governos. Talvez convença os indivíduos a não dar um centavo a entidades que não passem por auditorias periódicas, não tenham suas contas transparentes e não trabalhem com indicadores de desempenho.

 

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES:
14/11/2007
Cinema Paradiso
12/11/2007
Trabalhador é um luxo
12/11/2007
Como ganhar diploma de otário
08/11/2007
Desemprego burro
07/11/2007
Professor punk
06/11/2007
O judeu é mais inteligente?
05/11/2007
Luzes da cidade
31/10/2007
Triângulo amoroso em São Paulo
29/10/2007
Aborto, crime e castigo
29/10/2007
O aborto de Caetano, Chico e Niemeyer
Mais colunas