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SOLIDARIEDADE SEM LIMITES
19/07/2004
Dona-de-casa organiza feiras solidárias e ajuda 25 famílias

O barraco de Maria Argentina da Conceição, 72 anos, era de madeira, sem ventilação e quando chovia a água passava pelo meio da sala. Prestes a desabar e escorada por um pedaço de madeira, a casa também não tinha banheiro. O vaso ficava no lado de fora, num lugar sem paredes, exposto ao tempo e às vistas de quem passasse. Tudo isso ficou no passado. Graças ao dinheiro arrecadado em bingos, festas, rifas e feiras, organizados pelo projeto Solidariedade Sem Limites, essa moradora da favela São Cosme e Damião, em Realengo, está às vésperas de ganhar uma casa novinha em folha. E não vê a hora de se mudar.

O que faz com que Dona Argentina não caiba em si de contentamento. “Moro aqui há 40 anos. Quando vim pra cá, meu primeiro marido logo me abandonou com as crianças. E ainda vendeu nosso barraco, me deixando sem ter pra onde ir. Foi um pedreiro daqui que me ajudou, construindo um barraquinho pra mim. Foi onde vivi até hoje. Mas depois de tanto tempo a casa estava quase caindo. Quando pensei que ia reviver a angústia de não ter rumo novamente, a dona Lúcia apareceu pra me ajudar. Por isso eu digo que Deus é muito bom”, conta.

Ela fala de Lúcia de Fátima Freire de Oliveira Barreto. Moradora do mesmo bairro da Zona Oeste carioca, essa dona de casa de 44 anos teve a idéia e o empenho para criar o Solidariedade sem Limites há três anos. Ao ingressar na faculdade de Pedagogia, ela resolveu criar uma forma de complementar projetos sociais já existentes. “Quando comecei a estudar algumas iniciativas e compará-las com os resultados alcançados, vi que bons projetos apresentavam falhas. Eu não queria apenas criticar o que já existia, mas melhorar os resultados. Vi que não basta ajudar de forma assistencialista; é preciso que se aja dentro das famílias”, explica.

Passou então da teoria à prática. Numa visita à associação de moradores da São Cosme e São Damião, uma das favelas mais pobres de seu bairro, ela pediu que lhe indicassem as 20 famílias mais necessitadas da comunidade. “Queria saber o que eles mais precisavam e ver como poderia ajudar”, conta. Sua prioridade foi para os casos mais críticos: crianças sem pais, mães solteiras e com muitos filhos, idosos, famílias sem um chefe. “Pedi 20, mas ganhei 25. E nestas famílias, há 60 crianças e 12 idosos. Quase achei que não ia dar, mas depois vi que mesmo em ritmo lento eu poderia sim fazer alguma coisa”, afirma.

Duas famílias em especial
O passo seguinte foi conhecer de perto todas as famílias, selecionando, caso a caso, os mais emergenciais. As principais dificuldades comuns aos moradores da Cosme e Damião, Lúcia pôde ver de perto. “A fome, a falta de emprego, as condições desumanas das moradias úmidas, pessoas com doenças respiratórias por dormirem no chão e em barracos pouco ventilados, a desesperança por uma melhoria de vida, nenhuma perspectiva de futuro e histórias de vida marcadas por dificuldades. Tudo isso me chocou”, lembra.

Lúcia se impressionou particularmente com duas histórias. “Fiquei chocada ver duas pessoas idosas, a Dona Argentina e o marido, tendo que sobreviver sem a menor condição. Como uma senhora conseguia tomar banho na frente de quem passasse? Era uma vida humilhante!”, diz. A indignação fez com que Lúcia desse prioridade ao caso e providenciasse a reconstrução da casa do casal.

Outra família que chamou sua atenção foi a de cinco irmãos adolescentes e duas crianças, filhos da jovem mais velha. Juliana Patrícia Oliveira de Souza, de 19 anos; Cíntia Lima Gomes, de 17; Delson Lima Gomes Júnior, de 15; Carlos André Oliveira Santos, de 12; Yuri Oliveira Santos, de 8; Thaís Eduarda Oliveira Santos, de 5, e João Vítor, de um ano, filho de Juliana, têm a vida marcada pelo sofrimento. “Sem pai nem mãe, eles tentam sobreviver sem qualquer referência ou orientação”, diz Lúcia.

No início, Lúcia promovia bingos e rifas. Os bingos já garantiram a distribuição de mais de 700 brinquedos – alguns deles doados – à garotada da comunidade do São Cosme São Damião, no Dia das Crianças. Ano passado, a abertura e divulgação oficial do projeto aconteceu com a organização de uma festa de Natal. “Saí pela vizinhança, batendo de casa em casa e consegui 72 famílias que aceitaram vestir e presentear uma pessoa da favela, além de doar um prato para a ceia. As crianças ganharam roupas e brinquedos e os idosos roupas, objetos e produtos de higiene pessoal”, conta a dona-de-casa.

Ajudando e faturando um troco
Apesar da alegria que levava às famílias da favela, Lúcia sabia que nada daquilo resolvia os problemas mais críticos. “Era preciso gerar mais dinheiro e montar um caixa que bancasse nossas primeiras realizações. Foi aí que resolvi promover as feiras”, diz Lúcia.

Hoje elas são a maior fonte de arrecadação do projeto – quase 15 já foram realizadas. Funciona assim: todas as sextas à noite e domingos de manhã, com autorização da prefeitura, a Rua Bandeira de Melo - também chamada de Rua 5, em frente ao Campo São Luiz – é fechada e tomada por barraquinhas. Ao todo são 30. Cada uma delas pagando R$ 10 (doces e salgados) ou R$ 15 (as demais) para participar da grande feira em que a praça se transforma.

Moradoras de Realengo, Tânia Cristina Barbosa de Oliveira, de 41 anos, e Elis Alves Rios da Silva, de 37, trabalham voluntariamente no projeto. “A gente se encarrega de organizar a arrumação das barracas, fazer as cobranças e incentivar a participação dos barraqueiros. Fico feliz porque as feiras não só ajudam aos moradores da favela, como a quem vive de vendas, e até mesmo a própria região, que quase não tem atrativos”, diz Tânia Cristina.

É o caso de Célia Alves Cavalcante, de 58 anos, que vende batata frita, doces e empadas, contribui com o projeto e ainda fatura um extra. “Antes só vendia em casa.. Quis ajudar e aproveito também para faturar um troquinho. Acho que isso é que é lucrar dos dois lados, né?”, anima-se. E fica ainda mais entusiasmada ao ver que a cada dia de feira, consegue ganhar cerca de R$ 120.

Dono de um trailer no Campo São Luiz, Erly Ramos da Costa , de 47 anos, destaca que participar de um ato solidário é o mais importante. “Tinha gente que dizia que a feira ia diminuir o meu movimento, mas eu não dei ouvidos a isso. Ainda participo pagando como um barraqueiro só para contribuir. Tiro meu chapéu para atitudes como a de Lúcia”, diz o comerciante.

Rebuliço na favela
O lucro das feiras tem destino certo. Para a casa de dona Argentina, os gastos de R$ 2.330 foram com material de construção e mão-de-obra de pedreiro e ajudante. Fora as doações conseguidas com a realização de um bingo organizado pelo projeto. As casas de material de construção da região e outras pessoas interessadas em ajudar contribuíram com sacos de cimento, mais de um milheiro de tijolos; areia; pedra; canos; azulejo; portas, janela; louça sanitária. “A obra ainda não tem prazo para terminar pois é preciso que as feiras continuem acontecendo para continuarmos os trabalhos”, diz. Em dois meses, a nova casa foi levantada. Agora aguarda apenas acabamento.

Enquanto isso dona Argentina e a família aguardam na casa de uma vizinha, que sem resistência os acolheu. “Estou aguardando por um sonho realizado. Agora vou viver como gente”, diz dona Argentina bastante emocionada. Ela, o marido Aldir da Silva, 72 anos, a filha Rosária Soares, de 43 e o neto Washington, de 16, sobrevivem apenas com o dinheiro de sua aposentadoria e do pouco que Aldir consegue como catador de lixo. “Se muitas vezes não dá nem para comer, como podíamos pensar em fazer obra?”, questiona.

A reforma da casa de dona Argentina causou um rebuliço na favela. Várias outras famílias procuraram Lúcia, tentando convencê-la de suas necessidades. “Tenho que explicar que a prioridade é para os casos mais críticos. Afinal, estou tentando resolver os problemas de risco de vida e não apenas de embelezamento das casas. No fim, eles acabam entendendo”, explica.

Em outros casos, como o dos irmãos órfãos, a ajuda não pode ser só material. “Conheci Juliana quando comecei a visitar a comunidade. Ela já tinha o João Vítor e estava grávida de mais uma criança. Mais do que ajuda financeira ela pedia socorro por não conseguir criar seus irmãos. Como nunca tinha recebido cuidados também não aprendera a cuidar de ninguém, o que dirá de sete pessoas?”, conta Lúcia.

A mãe das crianças, que morava na Mangueira, passou por uniões desfeitas com homens violentos, dois deles traficantes. Juliana foi estuprada pelo terceiro marido da mãe aos 12 anos. Quando os irmãos contaram para a mãe, ela não só não acreditou como lhes deu uma surra.

“O resultado é que o Júnior passou a viver mais nas ruas do que em casa e Cíntia foi viver com uma madrinha. Mais tarde, a mãe e o marido morreram de Aids, e Juliana, que também contraiu o vírus com o estupro, ficou com as crianças. Foi quando seu pai, que poucas vezes aparecia para visitá-la, arrumou o barraco na São Cosme e São Damião onde vivem até hoje”, conta Lúcia.

Com infâncias tão marcadas pelo sofrimento, os irmãos tomaram caminhos difíceis. “Nas ruas, Júnior se envolveu com drogas e passou a adolescência pulando de abrigo em abrigo; Juliana antes de engravidar do João, dormia com o ex-namorado só para garantir a comida dos irmãos. Apenas Cíntia conseguiu viver de forma menos traumática, morando com a madrinha. Ela estuda e sonha em ser médica e os irmãos a respeitam pelo ar de superioridade que seus desejos de vida parecem causar. É tudo muito complicado”, conta Lúcia.

Para colocar ordem na casa, ela faz mais do que apenas colocá-los no projeto. “Vou à casa deles, converso com cada um, oriento. Graças a Deus, eles me escutam”, diz. Lúcia procura conversar sobre tudo; desde alimentação a planejamento familiar, passando por higiene e horários. “As crianças ficavam soltas na favela e só iam dormir às duas da manhã. Falo ainda da importância de se respeitar e ouvir o outro. Na verdade, eu entro na intimidade deles, brigo, aconselho e cobro”, diz. Na prática, Lúcia matriculou todos na escola, pôs em dia as vacinas e submeteu todos a testes de HIV. Somente o de Juliana deu positivo.

O fato é que Lúcia e o pessoal do projeto já anda pensando no futuro. Depois que dona Argentina já tiver sua casa e os irmãos estiverem mais encaminhados, será o momento de manter-lhes o apoio, mas direcionar a ajuda a outros casos. “A família de dona Argentina e outras tantas poderão contar com o auxílio de cestas básicas e outras doações. Já os jovens precisam ter consciência de que podem trabalhar e depender cada vez menos das doações. Eles precisam começar a ter sua própria renda e até ajudar outras pessoas”, fala Lúcia.

Para que isso aconteça Lúcia pretende dar mais um passo: promover em escolas particulares do bairro campanhas mensais de arrecadação de alimentos, roupas e brinquedos para atender famílias sem renda e com o dinheiro arrecadado nas feiras ou por outras atividades construir uma creche na comunidade.

A idéia de criar um espaço para os filhos de moradoras surgiu pela necessidade. “Pude ver que muitas mães que perdem o marido não conseguem trabalhar por não ter onde deixar os filhos. A limitação de idade imposta nas creches também atrapalha. Se tiver cinco filhos, pode matricular três na creche e ainda assim não conseguir trabalhar fora porque os outros dois não foram aceitos por serem um pouco mais velhos. O resultado é que ou eles ficam sozinhos na comunidade ou a mãe desiste de procurar emprego”, critica Lúcia.

Para procurar resolver o impasse, Lúcia quer criar uma creche diferente. “Todo jovem poderá freqüentar. Os maiores, quando voltarem da escola, podem ficar lá e não soltos pela favela. Lá, terão acesso a livros, brinquedos e atividades. E os pais terão palestras e orientação. Mas só os filhas de mães que estejam estudando ou trabalhando, pois o espaço não pode servir de depósito de crianças enquanto a mãe fica em casa sem perspectiva”, fala.

O que quer é apoiar as mulheres que desejam participar dos projetos já existentes de alfabetização para adultos ou de qualificação profissional, mas que precisam tomar conta dos filhos, que criam sozinhas. “Este lado injusto nem sempre é visto por alguns projetos”, explica Lúcia.

“Tenho apenas muita boa vontade, por isso quero também que as pessoas vejam as minhas falhas e criem outras iniciativas que complementem minhas idéias. Acho que só assim a ajuda social realmente acontece”, diz. Tudo o que Lúcia espera é conseguir adesões solidárias e expandir suas iniciativas por outras comunidades da região.

ANNA CAROLINA MIGUEL
VILMA HOMERO
do site Viva Favela

 
 
 

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