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O
consenso da miséria
Os sequestradores
jamais imaginaram que acabariam participando da política
industrial brasileira e que ajudariam nos números da
balança comercial, registro da diferença entre
importação e exportação.
Na semana
passada, essa ajuda involuntária foi especialmente
notável. Por rádio, jornais e TV, em horário
nobre, foi divulgado o conselho de sequestradores a uma de
suas vítimas, a atriz Vanessa Bueno, sequestrada no
Rio. Ela foi aconselhada a não usar automóvel
importado. "Vou mudar de carro", jurou Vanessa.
Há
muito tempo, essa cautela, especialmente em São Paulo,
vem provocando estragos nas vendas de importados e favorecendo
a aquisição de modelos nacionais. Estão
em alta os carros sem porta-malas fechados (esse espaço
do veículo é usado para conduzir os reféns).
Além de interferirem na política de importações,
os sequestradores já influenciam até mesmo na
preferência do design automobilístico.
Andar
de automóvel hoje, seja qual for a marca, implica risco.
Ivan Paulo dos Santos é um balconista, proprietário
de um automóvel Gol fabricado em 1991. Na terça-feira
passada, ele levou a mulher, que, grávida, necessitava
de um atendimento urgente, a um pronto-socorro em São
Paulo. Parou, às pressas, em frente ao hospital. Voltou
correndo para estacionar melhor e, enquanto a mulher, aflita,
esperava o médico, ele foi levado.
Por atingir
diretamente a elite, habitualmente alheia às questões
sociais, a onda de sequestros é um dos ingredientes
para a percepção da urgência de desenvolver
políticas que reduzam a marginalidade.
O ambiente
de desagregação, no qual a violência é
apenas a febre que revela a infecção, é
o cenário em que se monta o mais importante movimento
de combate à miséria.
Assim
como, no passado, economistas e políticos tiveram de
chegar a um consenso sobre a importância da disciplina
dos gastos públicos para combater a inflação
-pois não havia mágicas a fazer-, os formuladores
de políticas públicas dos mais diversos partidos
e tendências estão falando a mesma língua.
É
gente que, em maior ou menor grau, vai inspirar ações
nos âmbitos federal, estadual e municipal. Estão
preocupados em apontar caminhos para o enfrentamento da violência
e em nutrir capital humano apto a lidar não só
com a sociedade da era do conhecimento mas também com
a escassez de recursos.
O consenso
era visível no auditório da Folha, na semana
passada, onde ocorreu, em dois dias, seminário sobre
a miséria organizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada); essa entidade, vinculada ao governo,
está na vanguarda de estudos sobre a pobreza no Brasil.
Estiveram
presentes alguns dos mais destacados pensadores sobre o tema,
assim como operadores de políticas sociais do governo
e da oposição -pessoas de diferentes partidos,
ideologias e níveis de governo. Na platéia,
secretários estaduais e municipais, além de
representantes de ONGs respeitadas dentro e fora do país.
As divergências
eram detalhes. No essencial, todos concordaram que apenas
crescimento econômico não gera riqueza social
e que a melhor forma de distribuir renda é investir
nas crianças e nos adolescentes. É consenso
que dinheiro para a educação é investimento,
a ser colhido na forma de trabalhadores mais produtivos e
de uma economia mais dinâmica.
O dinheiro
é, antes de tudo, malgasto; não chega ao pobre.
É drenado em boa parte aos incluídos: as aposentadorias
de funcionários públicos são um exemplo
disso. Uma reforma social complexa é hoje tão
urgente quanto uma reforma tributária ou política.
Os programas de renda mínima (a bolsa-escola e a bolsa-alimentação,
entre outros) são uma ponte para levar o dinheiro diretamente
aos mais pobres.
Mas, se
não houver uma porta de saída, ou seja, o desenvolvimento
da autonomia dos indivíduos, vão-se transformar
numa esmola permanente. O recurso deve exigir do beneficiário
uma contrapartida, como treinamento profissional, progresso
escolar, cuidados com a saúde ou melhorias na comunidade.
Há
uma superposição de programas, o que significa
perda de dinheiro e de energia.
Ainda
são pouco visíveis, mas surgem, aqui e ali,
experiências no setor público que tentam, ao
mesmo tempo, envolver diferentes atores e romper a fragmentação.
É o caso do Projeto Alvorada, do governo federal, no
qual se junta uma galeria de ministérios, acoplados
a programas estaduais e municipais. Trabalham-se simultaneamente
a promoção social e a promoção
econômica.
Merece
atenção o que acontece agora com os programas
de renda mínima na cidade de São Paulo. Reúnem
verbas municipais, estaduais e federais voltadas à
melhoria do nível de escolaridade, à intervenção
no espaço público e à profissionalização,
sempre em combinação com associações
civis. É o mesmo modelo que o governo do Rio, agora
nas mãos do PT, pretende aplicar.
Essas
experiências ainda estão no começo; seus
resultados são, por enquanto, frágeis. Há
inúmeros problemas de gestão (a demora em cadastramentos,
por exemplo, faz que a cidade de São Paulo deixe de
receber milhões de reais para a bolsa-escola) e de
falta de capacitação de funcionários
municipais, mas certamente elas são o paradigma da
política social. Fora disso, é jogar dinheiro
fora.
PS -Uma
das idéias em discussão é criar uma espécie
de mapa da mina das políticas sociais. Para isso, é
preciso cadastrar todas as famílias que recebem algum
benefício federal, estadual ou municipal. Com base
nessas informações, torna-se possível
medir até onde vai a superposição de
programas. O objetivo é criar um cartão único
para todos os recursos distribuídos, não restrito
só aos federais. Talvez seja demais para a nossa classe
política, mas essa é a proposta mais séria
para quem está preocupado com a racionalidade dos recursos
públicos.
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