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Globalização
cria novas formas de trabalho compulsório
Em artigo no
caderno Mais! da Folha de S.Paulo, o cientista político e
historiador Luiz Felipe de Alencastro analisa as características
do chamado trabalho compulsório diante da globalização.
Ele aponta que,
apesar do declínio da escravidão, a exploração
do trabalhador persiste. O trabalho compulsório estende-se,
atualmente, dos imigrantes ilegais aos funcionários das empresas
da Nova Economia, estes últimos bombardeados 24 horas por
informações (e demandas do escritório) via
celulares e e-mail.
Alencastro acredita
que o capitalismo globalizado tem como desafios terminar com a intrusão
patronal nos momentos privados dos assalariados, regulamentar o
trabalho e garantir a fruição do lazer.
(Folha
de S.Paulo)
A
servidão de Tom Cruise: metamorfoses do trabalho compulsório
O trabalho compulsório,
distinto do trabalho forçado imposto como punição
no Código Penal de alguns países, conheceu mudanças
radicais nos últimos tempos. Na sua definição
mais simples, referente a relações sociais em que
o serviço é prestado sob coerção direta,
o trabalho compulsório abrange situações extremas.
Ao longo das décadas, as nações viram o declínio
da escravidão, o desenvolvimento de diversas formas de servidão
laboral e a extensão do assalariamento. No entanto, nos dias
de hoje, os países desenvolvidos assistem ao ressurgimento
de antigos modos de sujeição dos imigrantes ilegais
ao mesmo tempo em que a Internet abre a via à exploração
de comunidades longínquas e à intrusão patronal
no âmbito doméstico e no tempo de lazer estatutariamente
reservado aos assalariados. Na primeira metade do século
19, Francisco Gomes de Amorim, português nascido em 1827,
embarcou aos dez anos de idade na cidade do Porto para Belém
do Pará. Ia sozinho, semiclandestino, entregue por seus pais
a um capitão de navio que o vendeu, como a tantos outros,
no mercado de escravos brancos da capital paraense. Viveu por lá
durante nove anos. Correspondeu-se com Almeida Garrett, voltou para
Portugal, onde se tornou escritor de merecimento (Machado de Assis
resenhou um de seus livros de poemas e achou-os razoáveis),
e, sobretudo, combateu a exploração da imigração
portuguesa pelos seus compatriotas e pelos brasileiros. Sua saga
e sua correspondência, publicadas num livro recente, ilustram
a "servidão branca" que ocorreu antes e depois
da abolição da escravidão no Brasil (1). Além
do Pará, havia em quase todos os portos brasileiros mercados
mais ou menos formais em que se negociava a mão-de-obra aliciada
em Portugal. Previamente endividados com os intermediários
-os "gatos" da época, que pagavam a passagem e
a alimentação no navio-, esses imigrantes trabalhavam
sem pagamento durante longo período até reembolsar
sua dívida. Geralmente, tais trabalhadores viviam cativos,
pois o credor era também seu patrão, na pessoa do
fazendeiro que havia pago suas dívidas com o intermediário.
A praga da exploração de imigrantes está de
novo na ordem do dia. Redes de tráfico de imigrantes clandestinos
se formam na Ásia, na África, na Europa Central e
na América Latina. Quem viaja ou vive na Europa Ocidental,
nos Estados Unidos ou no Japão pode constatar a olho nu que
o fenômeno já toca contingentes de brasileiros. Ontem,
como hoje, ser explorado pelo capitalismo parece bem melhor do que
não ser explorado pelo capitalismo. Fatos dramáticos
de exploração humana, que pareciam coisa do passado,
estão de novo nas páginas dos jornais. Prostituição
forçada, venda de bebês, extorsões, turnos de
trabalho escorchantes martirizam o cotidiano de imigrantes ilegais
que conseguem se enfiar nos países desenvolvidos. Na outra
ponta, os malfeitores achacam as famílias dos migrantes para
receber suas remessas de divisas em reembolso do financiamento da
viagem. Segundo as autoridades britânicas, as gangues de traficantes
de trabalhadores extraem US$ 30 bilhões por ano nessas atividades.
No meio do caminho, as tragédias: naufrágio de barcas
com albaneses no litoral italiano e de barcas com africanos no litoral
da Espanha, mortes pelo frio do inverno na travessia a pé
dos Alpes ou dos Pireneus, desastres na fronteira do México
com os Estados Unidos.
No último
mês de junho, o fenômeno virou catástrofe com
a descoberta de 58 jovens chineses asfixiados num caminhão
no porto de Dover, quando tentavam entrar na Inglaterra. Sob o impacto
do drama, ministros e representantes de 30 países se reuniram
recentemente em Paris para discutir o problema. No final da conferência,
Barbara Roche, ministra delegada do Ministério do Interior
britânico ("Home Office") para assuntos de imigração,
escreveu: "Os imigrantes sempre representaram um contributo
positivo para as sociedades que os integraram. Temos que encontrar
uma solução para responder à aspiração
legítima das pessoas em busca de migração e...
ter um olhar novo sobre a resposta que os fluxos migratórios
são suscetíveis de trazer a nossas necessidades econômicas
e sociais". Na prática, as perspectivas não são
boas. As discussões parecem apontar para a criação
de uma autorização de estadia temporária na
União Européia, condicionada a um contrato de trabalho.
Caso venha a ser implementada, essa doutrina fecha o caminho à
integração, louvada pela ministra britânica,
e transfere a administração da política imigratória
para as mãos do patronato europeu.
Outros bolsões
de trabalho compulsório integram-se à economia global
via Internet. Firmas importantes têm terceirizado suas atividades,
transferindo para empresas situadas na Índia e nos conventos
espanhóis parte de sua gestão administrativa. Quem
irá controlar a penosa jornada de trabalho dos digitadores
indianos e das freirinhas espanholas? Seria entretanto ilusório
julgar que o fenômeno só atinge os pobres ou os países
pobres. Como se sabe, a utilização do correio eletrônico,
do telefone celular e o uso combinado, via WAP (sigla em inglês
para "protocolo de aplicações sem fio"),
do e-mail e do acesso à Web no celular aumentam a demanda
de trabalho nos escritórios e empurram as tarefas laborais
para dentro da casa e da vida privada dos assalariados. Um estudo
realizado pela firma Pitney Bowes revela que um funcionário
americano recebe uma média de 204 mensagens diárias
em seu escritório, incluindo os e-mails (50), telefonemas
(48), correspondência interna (18), cartas (15), fax (10)
e outros recados. Uma análise publicada em 1997 pela agência
Reuters, "Dying for Information" (Morrendo por Informação),
mostrava que um quarto dos 1.313 executivos americanos interrogados
declarava sentir-se fisicamente doente com o afluxo contínuo
de informações nas suas mãos. Além disso,
a pressão do trabalho transborda os limites do escritório.
De fato, outro estudo, realizado em 1999 pelo Gallup e o Institute
of the Future, indica que 42% das mensagens recebidas por um funcionário
em sua casa ou no trajeto entre seu domicílio e o local de
trabalho, referem-se, na realidade, ao seu serviço (2). No
setor específico da nova economia, depois de algumas mortes
por exaustão de jovens executivos mergulhados no trabalho
contínuo, nasceu a expressão "pifado pelas dotcom"
("dotcom burnout"). Da mesma forma, as imprensas européia
e americana usam a fórmula "escravos do Silicon"
para designar jovens e menos jovens que passam a semana fechados
em cubículos, onde comem, dormem e trabalham de virada. Naturalmente,
os que mais se desgastam nessas atividades não são
propriamente assalariados, mas empregados que obtiveram participação
acionária na sua firma. Porém, com a forte queda que
as ações das empresas de Internet vêm sofrendo
nos últimos meses, esse tipo de remuneração
virou às vezes fumaça.
Nessas circunstâncias,
começa a surgir e a tomar contornos de reivindicação
trabalhista o "direito à desconexão": o
direito para o assalariado de se desligar -fora do horário
de trabalho, nos fins-de-semana, nas férias - da rede telemática,
do arreio eletrônico que o liga ao seu patrão ou a
sua firma. Direito espetacularmente desrespeitado na primeira cena
de "Missão Impossível 2", quando um helicóptero
dos serviços secretos acha Tom Cruise no alto de uma montanha
e o engaja numa nova empreitada. Direito reivindicado nas últimas
cenas do filme, quando o ator-herói, depois de salvar o mundo,
informa ao chefe que não dirá onde vai descansar com
a mocinha, senão não poderá ter férias
tranquilas. Na primeira parte do filme, Tom Cruise não sofre
coerção direta para fazer seu serviço, mas
ele é vítima da alienação, da manipulação
de seu chefe, e renuncia à essência contratual do trabalho
livre para sujeitar-se à extorsão patronal.
É óbvio que os patrões gostariam de inculcar
em seus assalariados a idéia de que eles são outros
tantos Tom Cruise. Outros tantos especialistas mobilizáveis
em qualquer canto para salvar a humanidade ou, de maneira mais prosaica
e mais provável, para garantir os lucros de sua firma e o
seu emprego.
Entretanto o
funcionário especializado, e em particular o funcionário
brasileiro, poderá pensar que seu destino se parece muito
mais com o da Maria. Com a sina de sua empregada doméstica
-alojada no quartinho do fundo da casa ou do apartamento e pronta,
todo dia, toda hora, para atender os pedidos e os abusos do patrão,
da madame e dos filhos da família.
De qualquer
modo, já existe em alguns países europeus e nos Estados
Unidos um novo tipo de trabalhador, espécie de Maria globalizada,
um indivíduo isolado pronto para ser empregado em qualquer
circunstância. Aliciados por agências de trabalho interino,
esses indivíduos -sem lenço, sem documento, mas com
um celular no bolso- são paus-para-toda-obra, fazendo trabalhos
geralmente pouco qualificados, fora de qualquer garantia trabalhista.
Eliminar as
torpezas da exploração patronal, regulamentar o trabalho,
fruir o lazer, missão impossível no capitalismo globalizado?
Notas:
1. José Rodrigo C. da Costa Carvalho, "Aprendiz de Selvagem
- O Brasil na Vida e na Obra de Francisco Gomes de Amorim",
Porto, 2000.
2. Veja-se o artigo "L'Insupportable Stress de l'E-Mail Impromptu"
(A Insuportável Pressão do E-Mail Improvisado), em
"Le Monde", 4/ 7/2000.
Luiz Felipe
de Alencastro, cientista político e historiador, autor de
"O Trato dos Viventes - Formação do Brasil no
Atlântico Sul" (Companhia das Letras).
(Mais! - Folha
de S.Paulo)
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