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10/10/2001
-
07h48
CLÓVIS ROSSI
Colunista da Folha de S.Paulo
O governo Fernando de la Rúa arrancou ontem de seu congênere brasileiro o que Carlos Menem não havia conseguido em 1999: a introdução de salvaguardas para defender a produção argentina da excessiva desvalorização do real.
Menem, então presidente da Argentina, bem que tentou as salvaguardas, logo que o real sofreu o colapso de fevereiro de 1999. Mas o governo brasileiro reagiu enfaticamente, avisando que a adoção de salvaguardas violava "o espírito e a letra de uma área de livre comércio", conforme a Folha de S.Paulo ouviu à época dos negociadores brasileiros.
Por que, agora, a concessão? Responde o chanceler Celso Lafer: "É necessário calibrar o Mercosul, e as relações argentino-brasileiras, às atuais condições de temperatura e pressão".
Traduzindo: a Argentina está mergulhada em tão tremenda crise que ou o governo brasileiro cede ou o Mercosul fica ameaçado de desaparição pura e simples.
"Essa decisão de instrumentar salvaguardas tem o objetivo de salvar o bloco do perigo", confirma Lafer.
Em compensação, o bloco retrocede a sua pré-história. Nunca houve salvaguardas nas regras do Mercosul. Nem poderia haver: uma zona de livre comércio pressupõe a eliminação de todas as barreiras às importações entre os países-membros.
Salvaguardas são barreiras. Ou tomam a forma de tarifas de importação ou de cotas (até certa quantidade, um produto entra sem tarifas ou com tarifa baixa; acima do limite, a tarifa é bem maior).
O que houve, nos primórdios do Mercosul, foi o que o jargão comercial chama de regime de adequação. Ou seja, um determinado número de bens manteve um certo nível de proteção tarifária, até o final de 1999, quando todas as exceções foram derrubadas (exceto para os automóveis e o açúcar).
É razoável imaginar que o governo brasileiro cedeu porque temia a insistência do lado argentino em eliminar a TEC (Tarifa Externa Comum), que caracteriza uma união aduaneira, um passo adiante em relação às zonas de livre comércio.
Nessas, as tarifas de importação para os países-membros são paulatinamente reduzidas, até ser zeradas. Na união aduaneira, além disso, cria-se uma tarifa de importação comum a ser cobrada de todos os demais países.
A manutenção da TEC é importante porque a União Européia só negocia uma zona de livre comércio com o Mercosul se ela for mantida. O mandato negociador concedido à Comissão Européia, o braço executivo do conglomerado, prevê explicitamente que o entendimento só é cabível com uma união aduaneira.
Para o Brasil, é importante manter a negociação com a Europa, porque funciona como contraponto à Alca (Área de Livre Comércio das Américas, prevista para englobar os 34 países americanos, e na qual o grande parceiro são os Estados Unidos).
O problema é saber se a manutenção da TEC é suficiente para compensar a concessão feita aos argentinos.
É difícil responder de saída, porque apenas nas próximas duas semanas serão feitas as negociações que vão determinar quais serão os produtos que poderão ser objeto da salvaguarda.
Mas, em tese, o Brasil sai perdendo. Tudo indica que os setores na Argentina a ser protegidos com salvaguardas são justamente aqueles menos competitivos, o que, portanto, facilita as exportações brasileiras.
Pior: sob o guarda-chuva da salvaguarda, tais setores não sentem a pressão para se modernizar, o que tende a levá-los a defender a manutenção permanente do protecionismo, por mais que o comunicado oficial diga que será "temporário".
Se o modelo de salvaguarda a ser adotado pelo Mercosul for mesmo inspirado nas regras da OMC (Organização Mundial do Comércio), terá que seguir o artigo 19 da instituição. Aí, entra-se em um terreno pantanoso.
Para justificar a adoção de salvaguarda, nos termos do artigo 19, é preciso, primeiro, provar que houve aumento súbito e substancial das exportações de um dado produto. Depois, que essas exportações provocaram danos à produção local. Por fim, que há uma relação de causa e efeito entre uma coisa e a outra.
Não é, como se vê, um processo simples. Na OMC, a adoção de salvaguardas em geral provoca atritos entre os países. Não há por que não causá-los também no Mercosul, a menos que o governo brasileiro esteja disposto a passar por cima das regras do artigo 19, liberando a Argentina para impor salvaguardas nos setores com maior capacidade de pressão sobre o governo.
Tudo somado, fica claro que o episódio de ontem, diferentemente do que diz Lafer, não salvou o Mercosul do "perigo". Apenas comprou tempo, como vem sendo a regra desde a desvalorização do real, há dois anos e oito meses.
Leia mais no especial sobre Argentina
De la Rúa consegue o que Menem não obteve
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O governo Fernando de la Rúa arrancou ontem de seu congênere brasileiro o que Carlos Menem não havia conseguido em 1999: a introdução de salvaguardas para defender a produção argentina da excessiva desvalorização do real.
Menem, então presidente da Argentina, bem que tentou as salvaguardas, logo que o real sofreu o colapso de fevereiro de 1999. Mas o governo brasileiro reagiu enfaticamente, avisando que a adoção de salvaguardas violava "o espírito e a letra de uma área de livre comércio", conforme a Folha de S.Paulo ouviu à época dos negociadores brasileiros.
Por que, agora, a concessão? Responde o chanceler Celso Lafer: "É necessário calibrar o Mercosul, e as relações argentino-brasileiras, às atuais condições de temperatura e pressão".
Traduzindo: a Argentina está mergulhada em tão tremenda crise que ou o governo brasileiro cede ou o Mercosul fica ameaçado de desaparição pura e simples.
"Essa decisão de instrumentar salvaguardas tem o objetivo de salvar o bloco do perigo", confirma Lafer.
Em compensação, o bloco retrocede a sua pré-história. Nunca houve salvaguardas nas regras do Mercosul. Nem poderia haver: uma zona de livre comércio pressupõe a eliminação de todas as barreiras às importações entre os países-membros.
Salvaguardas são barreiras. Ou tomam a forma de tarifas de importação ou de cotas (até certa quantidade, um produto entra sem tarifas ou com tarifa baixa; acima do limite, a tarifa é bem maior).
O que houve, nos primórdios do Mercosul, foi o que o jargão comercial chama de regime de adequação. Ou seja, um determinado número de bens manteve um certo nível de proteção tarifária, até o final de 1999, quando todas as exceções foram derrubadas (exceto para os automóveis e o açúcar).
É razoável imaginar que o governo brasileiro cedeu porque temia a insistência do lado argentino em eliminar a TEC (Tarifa Externa Comum), que caracteriza uma união aduaneira, um passo adiante em relação às zonas de livre comércio.
Nessas, as tarifas de importação para os países-membros são paulatinamente reduzidas, até ser zeradas. Na união aduaneira, além disso, cria-se uma tarifa de importação comum a ser cobrada de todos os demais países.
A manutenção da TEC é importante porque a União Européia só negocia uma zona de livre comércio com o Mercosul se ela for mantida. O mandato negociador concedido à Comissão Européia, o braço executivo do conglomerado, prevê explicitamente que o entendimento só é cabível com uma união aduaneira.
Para o Brasil, é importante manter a negociação com a Europa, porque funciona como contraponto à Alca (Área de Livre Comércio das Américas, prevista para englobar os 34 países americanos, e na qual o grande parceiro são os Estados Unidos).
O problema é saber se a manutenção da TEC é suficiente para compensar a concessão feita aos argentinos.
É difícil responder de saída, porque apenas nas próximas duas semanas serão feitas as negociações que vão determinar quais serão os produtos que poderão ser objeto da salvaguarda.
Mas, em tese, o Brasil sai perdendo. Tudo indica que os setores na Argentina a ser protegidos com salvaguardas são justamente aqueles menos competitivos, o que, portanto, facilita as exportações brasileiras.
Pior: sob o guarda-chuva da salvaguarda, tais setores não sentem a pressão para se modernizar, o que tende a levá-los a defender a manutenção permanente do protecionismo, por mais que o comunicado oficial diga que será "temporário".
Se o modelo de salvaguarda a ser adotado pelo Mercosul for mesmo inspirado nas regras da OMC (Organização Mundial do Comércio), terá que seguir o artigo 19 da instituição. Aí, entra-se em um terreno pantanoso.
Para justificar a adoção de salvaguarda, nos termos do artigo 19, é preciso, primeiro, provar que houve aumento súbito e substancial das exportações de um dado produto. Depois, que essas exportações provocaram danos à produção local. Por fim, que há uma relação de causa e efeito entre uma coisa e a outra.
Não é, como se vê, um processo simples. Na OMC, a adoção de salvaguardas em geral provoca atritos entre os países. Não há por que não causá-los também no Mercosul, a menos que o governo brasileiro esteja disposto a passar por cima das regras do artigo 19, liberando a Argentina para impor salvaguardas nos setores com maior capacidade de pressão sobre o governo.
Tudo somado, fica claro que o episódio de ontem, diferentemente do que diz Lafer, não salvou o Mercosul do "perigo". Apenas comprou tempo, como vem sendo a regra desde a desvalorização do real, há dois anos e oito meses.
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