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13/07/2002 - 11h31

Análise: Escândalos contábeis nos EUA revelam rede de privilégios

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PAUL KRUGMAN
Especial para o ''The New York Times''

A crise atual do capitalismo norte-americano não envolve apenas os detalhes específicos sobre contabilidade trapaceira, opções de ações, empréstimos a executivos e assim por diante. Ela trata da maneira pela qual as regras do jogo foram distorcidas em benefício dos privilegiados.

E a administração Bush está repleta de privilegiados desse tipo. É por isso que o presidente Bush não pode escapar com uma demonstração meramente retórica de oposição aos malfeitores executivos. Para tratarmos do exemplo mais extremo (até agora) desse tipo de distorção, de que maneira se pode levar a sério a posição moralista do presidente quando Thomas White -cuja divisão da Enron gerou US$ 500 milhões em falsos lucros e que vendeu US$ 12 milhões em ações pouco antes do colapso da empresa- continua a ocupar o posto de secretário do Exército?

No entanto, tudo o que Bush disse e fez ultimamente demonstra que ele não percebe a situação. Questionado sobre a transação da Aloha Petroleum com a sua ex-empresa, a Harken Energy -na qual grandes lucros foram registrados em um negócio pago pela própria empresa, uma transação que obviamente não tinha significado a não ser inflacionar os lucros reportados-, ele respondeu: "Houve uma diferença honesta de opiniões... às vezes as coisas não são exatamente brancas e pretas, quando se trata de procedimentos contábeis".

E ele continua a se opor tanto a reformas que reduziriam os incentivos a trapaças corporativas, tais como a exigência de que empresas descontem do valor de seus lucros as opções de ações concedidas a executivos, quanto reformas que tornariam mais difícil executar essas trapaças, tais como não permitir que as empresas de auditoria trabalhem como consultoras para as mesmas empresas cujas contas auditam.

A coisa mais próxima a uma proposta substantiva em meio ao discurso de retórica ríspida, mas quase sem nenhum conteúdo que Bush fez na terça-feira, foi seu pedido de punição adicional para os executivos condenados por fraude. Mas essa é uma ameaça vazia. Na realidade, os executivos de primeiro escalão raramente são acusados de crimes; não houve sequer um indiciamento criminal relacionado ao caso Enron, até agora, e até mesmo Al "Serra Elétrica" Dunlap, um forjador serial de livros de contabilidade, está enfrentando apenas um processo civil. E é raro que eles terminem condenados, quando acusações lhes são feitas. As questões contábeis são técnicas o suficiente para confundir muitos júris; advogados dispendiosos aproveitam ao máximo a confusão, e, se tudo falhar, os executivos importantes têm amigos bem posicionados que os protegem.

Nisso, como em muitos outros aspectos da questão de governança corporativa, a atual onda de escândalos é prefigurada pela história pessoal do presidente Bush.

E uma consideração extemporânea: alguns especialistas tentam descartar as dúvidas quanto à carreira de negócios de Bush como injustas -os casos aconteceram muito tempo atrás e, portanto, são irrelevantes. No entanto, muitos desses mesmos especialistas consideraram apropriado gastar sete anos e US$ 70 milhões investigando uma transação imobiliária fracassada que aconteceu ainda mais longe, na história pessoal de Bill Clinton, do que os casos atualmente em discussão. E se eles realmente desejam algo de mais recente, por que não mencionam o investimento extraordinariamente lucrativo que Bush realizou nos Texas Rangers (uma equipe de beisebol), que se tornou enormemente rentável devido a uma teia altamente incestuosa de políticas públicas e negócios privados? Como aconteceu com relação à Harken, Joe Conason expôs o caso em todos os detalhes na revista "Harper's Bazaar" quase dois anos atrás.

Mas a história da Harken ainda tem mais a nos ensinar, porque a investigação realizada pela Securities and Exchange Commission (SEC, a agência federal norte-americana que regulamenta e fiscaliza os mercados de valores mobiliários) sobre a venda de ações realizada por Bush é uma ilustração perfeita do motivo para que a retórica ríspida do presidente não assuste os malfeitores bem relacionados.

Bush alega que foi "examinado" pela SEC. Na verdade, a investigação conduzida pela agência foi especialmente superficial. A SEC decidiu, de alguma maneira, que a venda de ações realizada por Bush em momento tão propício a ele não refletia o uso de informações privilegiadas, e isso sem entrevistá-lo, ou aos demais membros do conselho da empresa. Talvez os dirigentes da SEC tenham sentido que já sabiam o bastante sobre Bush: o pai dele, o presidente, havia indicado um bom amigo para presidir a agência.

E o assessor jurídico da SEC, que normalmente recomendaria a instauração de um processo legal, fora advogado pessoal de George W. Bush -negociou a aquisição dos Texas Rangers. Eu não inventei nenhuma dessas informações.

A maior parte dos malfeitores corporativos não são tão bem relacionados como o jovem Bush era; mas, como ele, esperarão, e provavelmente receberão, tratamento com luvas de pelica de parte das autoridades.

Em um paralelo interessante, a SEC atual, que alega estar investigando a seriamente questionável contabilidade da Halliburton, que transformou prejuízos reais em lucros contábeis, ainda não entrevistou o executivo-chefe da empresa no momento da irregularidade, Dick Cheney (vice-presidente de Bush).

O importante é que na semana passada quaisquer esperanças que restassem quanto a um rompimento de Bush com o seu passado e quanto a vê-lo defendendo as reformas corporativas desesperadamente necessárias se esboroaram. Bush não é um reformista verdadeiro. Só finge sê-lo diante das câmeras de TV.

Paul Krugman, economista, é professor na Universidade Princeton (EUA). Este artigo foi publicado originalmente pelo jornal "The New York Times".
 

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