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04/08/2002 - 09h42

Análise: Gafes de O'Neill desestabilizam América Latina

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GERARD BAKER
do "Financial Times"

É preciso uma façanha diplomática considerável para provocar uma reação de revolta em toda a população do Brasil e da Argentina, de uma só vez. Quando se agrada a um desses rivais sul-americanos, normalmente se desagrada ao outro, e vice-versa. Mas o governo Bush já demonstrou destreza considerável quando se trata de unir estrangeiros díspares contra ele. Na última semana, foi além do que já conseguira no passado.

O secretário do Tesouro, Paul O'Neill, que é para a sutileza verbal o que Ronaldo é para as defesas no futebol, foi indagado por um entrevistador de TV, no último fim de semana, se os EUA estão dispostos a emprestar mais dinheiro ao Brasil e à Argentina. Para apreciar plenamente a espantosa insensibilidade de sua resposta, vale a pena reproduzi-la na íntegra: "Esses países precisam adotar políticas que assegurem que o dinheiro que recebem em assistência seja bem aproveitado, e não saia direto para uma conta bancária na Suíça".

Os argentinos, chocados, interpretaram o comentário como intromissão totalmente desajeitada em seu drama político: o ex e possível futuro presidente Carlos Menem já admitiu que tem dinheiro guardado numa conta suíça. Os brasileiros ficaram ultrajados com o que parecia ser uma declaração direta de que seu governo provavelmente não é suficientemente confiável para que o Fundo Monetário Internacional possa lhe conceder um empréstimo de bilhões de dólares.

Derrota diplomática
Os esclarecimentos feitos por O'Neill já se tornaram coisa tão corriqueira, no último ano e meio, que a Casa Branca provavelmente faria bem em começar a emiti-los antes mesmo de o secretário do Tesouro abrir a boca para tecer seus comentários. Dessa vez, ela levou um pouco de tempo para dizer que é claro que o governo norte-americano tem grande confiança no Brasil e em sua equipe econômica.

É tentador desprezar esse último discurso franco até demais de O'Neill, enxergando-o como apenas mais um exemplo da fria indiferença dos EUA no que diz respeito à política econômica internacional. Seus representantes parecem desdenhar a própria idéia de que podem ter um papel a desempenhar para ajudar a estabilizar os mercados financeiros globais.

Mas existe algo nos grandes tropeços cometidos pelo secretário do Tesouro americano com relação à América Latina que traz à tona uma verdade lamentável referente ao que pode estar se configurando como o maior fracasso da política externa do governo de George W. Bush.

Parece quase risível dizer isso agora, mas essa foi uma equipe que chegou ao poder prometendo forjar um novo relacionamento com os vizinhos de hemisfério. Seus representantes criticavam a administração Clinton, com razão, por ter dado espaço para falsas esperanças quanto a um bloco político e econômico integrado. A América Latina era o ponto forte do presidente Bush, estava claro. Se o ex-governador do Texas sabia alguma coisa sobre alguma parte do mundo, era sobre a parte situada ao sul do rio Grande.

Deslizes
Após a trienal Cúpula das Américas, no Canadá, representantes americanos se derramaram em expressões de entusiasmo quanto às novas relações no hemisfério, contra o antiamericanismo negativo e mal-humorado presente por toda parte na Europa.

Na prática, porém, a política do governo Bush não apenas está provocando um retrocesso de 20 anos ou mais nas relações dos EUA com a maioria dos governos latino-americanos, como também corre o risco de gerar uma reação contrária antiamericana e antimercado que vai deixar as preocupações européias com o unilateralismo americano parecendo café pequeno.

Com relação à Argentina, os EUA vêm adotando uma estratégia incoerente que varia entre a rejeição inequívoca de qualquer apoio financeiro adicional, no início do ano passado, ao repentino apoio a uma malfadada extensão dos empréstimos do FMI, em agosto passado, voltando, desde então, à aparente indiferença.

No tocante ao Brasil, os comentários feitos por O'Neill não foram os primeiros que provocaram ultraje popular e pânico financeiro. Na realidade, a impressão que se tem é que, por vezes, ele tem feito força para solapar os esforços dos reformadores econômicos brasileiros de colocar o país num rumo fiscal sustentável.

Uma intervenção desajeitada na Venezuela, quando o presidente Hugo Chávez sobreviveu a uma tentativa de golpe liderada por militares, despertou desconfianças na América Latina quanto à transparência da administração George W. Bush e suas reais intenções na região.

A política comercial norte-americana, impondo tarifas ao aço e apoiando o aumento maciço nos subsídios agrícolas, vem minando a posição dos setores que combatem os fortes ventos protecionistas. E a indicação para o cargo de secretário-assistente para o hemisfério de Otto Reich, o homem que encabeçou as operações sigilosas de propaganda política contra os sandinistas e outros "inimigos" dos EUA na década de 1980, demonstra uma insensibilidade espantosa com relação às preocupações latino-americanas.

Novo foco
É claro que a mudança de foco da política externa após 11 de setembro é parcialmente responsável pelas lacunas e falhas dela na América Latina. Mas essa situação só irá se agravar se a guerra com o Iraque assomar como probabilidade mais real.

Os Estados Unidos têm razão em fazer questão de exigir políticas econômicas sensatas no Brasil, no Uruguai e, eventualmente, na Argentina, antes de disponibilizar mais apoio. Nesta semana, haverá algumas oportunidades para consertar alguns estragos. O'Neill estará no Brasil e na Argentina. Ajudará o fato de que o Chile, finalmente, em consequência da lei do "fast track" que acaba de ser aprovada pelo Congresso americano, vai poder ter o acordo comercial que já lhe foi prometido tantas vezes.

Mas a Argentina, o Brasil e outros países da região estão flertando perigosamente com futuros radicalmente populistas, antimercado e anticomércio. Se, daqui a uma década, estivermos perguntando quem perdeu a América Latina, boa parte da responsabilidade caberá aos EUA.

* Tradução de Clara Allain
 

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