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01/09/2002 - 09h47

Artigo: Liberdade de escolha

ALOIZIO MERCADANTE*
Especial para a Folha de S.Paulo

O modelo neoliberal, cujo predomínio se construiu durante os anos 80, na esteira do desmoronamento das economias de planejamento centralizado, foi vendido à opinião pública como o único caminho para o crescimento, para a estabilidade econômica e para o bem-estar social.

Liberalização comercial, abertura irrestrita ao capital estrangeiro, privatização das empresas públicas, minimização do papel do Estado na economia, revogação das normas de proteção social e trabalhistas e outras "reformas" destinadas a deixar ao livre jogo das forças de mercado a auto-regulação da economia confirmam a essência desse modelo. Viabilizada pela afirmação de duas hegemonias -a do capital financeiro e a dos Estados Unidos-, essa proposta se impôs em praticamente todos os países da América Latina ao longo das duas últimas décadas.

No plano teórico, essa redução do pensamento econômico a uma matriz única e apologética, na qual a história cede lugar à "razão ideológica", empobreceu o debate econômico e excluiu do universo profissional do economista a reflexão, o pensamento crítico e a capacidade de formulação estratégica, restringindo suas funções à de um mero operador de políticas pré-moldadas exogenamente.

Problemas como o crescimento econômico e o desenvolvimento desigual do capitalismo, para mencionar apenas dois tópicos relevantes na reflexão dos clássicos e de importantes pensadores contemporâneos, inclusive latino-americanos e brasileiros -como Prebish, Furtado e muitos outros-, desapareceram do debate. O keynesianismo foi censurado e banido dos países periféricos, agora reduzidos à dimensão de "mercados emergentes".

Mas não foi somente o debate econômico que se empobreceu. Uma das principais implicações da universalização das políticas neoliberais foi, em nome de conceitos supostamente neutros de "modernidade" e de "eficiência", transferir o poder de regulação coletivo e democrático da sociedade no domínio econômico aos atores privados, especialmente ao sistema financeiro globalizado. Foram os interesses desses atores, sancionados pelas instituições do capitalismo global -como o FMI, o Banco Mundial e a OMC-, que passaram a moldar a dinâmica dos "mercados emergentes".

Essa concepção de política econômica fracassou em toda a América Latina. Tornou as economias da região extremamente vulneráveis e instáveis -apesar da queda na taxa de inflação-, promoveu uma transferência patrimonial e de renda sem precedentes em favor dos países centrais e de suas grandes corporações, limitou e tornou incerto o crescimento econômico, aumentou o desemprego e a exclusão social e reduziu a autonomia dos Estados nacionais latino-americanos. Além disso, debilitou a democracia ao submeter os processos e as instituições de representação política à agenda do mercado financeiro.

O teste da realidade desnudou o "pensamento único" e pôs em evidência as mazelas do capitalismo sem freios e sem contrapesos. Em vez de crescimento, estabilidade econômica e bem-estar social, o que ocorreu foi um aprofundamento da situação de subdesenvolvimento da região, nas multíplices dimensões desse fenômeno.

A economia brasileira não alcançou o grau de deterioração econômica e social da argentina, mas sintetiza, em seus dilemas atuais, a inconsistência e a insustentabilidade desse modelo, assim como o seu antagonismo com os objetivos nacionais de desenvolvimento. O país necessita crescer, mas o "mercado" exige políticas recessivas. O país necessita aumentar o investimento em infra-estrutura e o gasto social, mas o "mercado" exige superávits primários crescentes. O país necessita criar mais empregos, mas o "mercado" encarece o custo do capital e desestimula o investimento produtivo. O país necessita exportar mais, mas o "mercado" corta as linhas de financiamento externo.

Soros já havia dito, faz algum tempo, que, ou se elegia um candidato comprometido com o atual modelo econômico, ou seria o caos. Milton Friedman, em recente entrevista à Folha, disse que, se elegerem um candidato à Presidência contrário aos interesses do mercado financeiro, os brasileiros deverão estar preparados para "pagar o preço de sua liberdade de escolha". Ora, foram precisamente as políticas submissas aos interesses do mercado, aplicadas ao longo dos últimos oito anos, que levaram o país à situação crítica em que se encontra. Quanto custará continuar abdicando de nossa liberdade de escolha?

O Brasil tem de definir sua política de desenvolvimento a partir de suas potencialidades, dos interesses e necessidades da sua população e dos objetivos estratégicos nacionais. Precisamos de uma política que promova a inclusão social e a redistribuição da renda e da riqueza, amplie nosso mercado interno e supere a vulnerabilidade externa e a fragilidade fiscal que estrangulam nosso crescimento. Precisamos de um novo projeto de desenvolvimento, que preserve o futuro de nosso patrimônio ecológico, resgate nossa imensa dívida social, reafirme nossa autonomia e nossa identidade cultural e promova o crescimento sustentado da nossa economia.

É evidente que as restrições que o país enfrenta são severas e a margem de manobra de que dispomos é pequena. Tampouco se desconhece a importância do sistema financeiro e do mercado de capitais em um economia contemporânea. Mas são a democracia e a soberania popular, por meio da política, que determinarão o lugar do mercado e do sistema financeiro na sociedade.

Celso Furtado, em um dos ensaios que integram seu livro "Brasil - A Construção Interrompida", há mais de dez anos já afirmava: "O subdesenvolvimento, como o deus Jano, olha tanto para a frente como para trás, não tem orientação definida. É um impasse histórico que espontaneamente não pode levar senão a alguma forma de catástrofe social. Somente um projeto político apoiado em conhecimento consistente da realidade social poderá romper a sua lógica perversa". É isso. Está na hora de mudar.
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* Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.
 

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