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08/01/2003 - 08h06

Bush erra ao estimular bolha no mercado acionário, diz Morgan Stanley

MARCIO AITH
da Folha de S.Paulo

Incapaz de entender as lições do recente estouro da bolha nas Bolsas, o governo dos EUA tenta criar uma nova e perigosa euforia no mercado de ações americano. A opinião é de Stephen Roach, economista-chefe e diretor de análise econômica global do banco americano Morgan Stanley.

Considerado um dos mais coerentes _e pessimistas_ analistas de Wall Street, Roach diz que o pacote de US$ 674 bilhões anunciado ontem pelo presidente George W. Bush erra ao focar seus incentivos na eliminação de impostos sobre dividendos distribuídos por empresas a investidores. "Washington tem memória curta", disse ele em entrevista à reportagem na sede do banco. "[Bush] esqueceu que chegamos a essa difícil situação justamente por exageros no mercado de ações."

Segundo Roach, o pacote de Bush não vai estimular a produção porque as indústrias ainda não se livraram do superinvestimento que fizeram nos últimos anos. O economista diz ainda que, em vez de consumir, os americanos deverão usar o novo alívio fiscal para pagar dívidas e poupar, à espera de um desfecho da crise no Iraque.

Folha - O pacote econômico anunciado ontem pelo presidente Bush será capaz de estimular a economia real dos EUA ou apenas inflar o mercado de ações?

Stephen Roach - Existe hoje um esforço global de combate à deflação que ameaça as economias dos países desenvolvidos. Esse esforço envolve estímulos fiscais e monetários [aumento de gastos públicos e corte de impostos e juros] nos EUA, no Japão e, cada vez mais, na Europa. Não duvido das boas intenções envolvidas nessa iniciativa. O problema é que, nos EUA, esse estímulo está focado exageradamente no mercado de ações, guiando não só a política monetária do país _o Fed (banco central dos EUA) parece preocupar-se apenas em valorizar as Bolsas_ como também a política econômica de Bush. É absurdo que o principal ponto do pacote seja a eliminação de impostos sobre dividendos de investidores. O correto seria reduzir a carga tributária das empresas. Washington tem memória curta. Esqueceu que chegamos a essa difícil situação justamente por exageros no mercado de ações. Estamos vivendo as consequências do estouro da mais devastadora bolha de ativos da história moderna. Curiosamente, nossas autoridades fiscal e monetária nada aprenderam com essa trágica experiência.

Folha - Quais são suas evidências de que o pacote irá falhar no objetivo de incrementar o consumo e estimular investimentos?

Roach - As três atividades que tipicamente respondem a estímulos como os desse pacote _consumo de bens duráveis, construção de casas e gastos de capital_ envolvem setores que superinvestiram nos últimos anos. É ilógico esperar que os americanos comprem novos carros porque o governo cortou os impostos sobre seus dividendos. Eles já compraram carros, muitos carros.

Folha - Qual foi o impacto da primeira fase do corte de US$ 1,35 trilhão em impostos, implementada pelo presidente Bush em 2001?

Roach - Os americanos usaram uma parte do dinheiro extra para pagar as dívidas gigantescas que acumularam voluptuosamente na última década. Pouparam a outra parte, elevando a taxa de poupança pessoal de 0,5% para 4% _um patamar ainda incrivelmente baixo para nossos padrões históricos. As pessoas não estão consumindo, mas poupando e pagando suas dívidas.

Folha- Não é positivo o fato de os americanos estarem poupando mais e pagando suas dívidas?

Roach - Se o que estamos fazendo é transferir a poupança do governo para a poupança dos cidadãos, a taxa nacional de poupança (a soma das poupanças das pessoas, empresas e governos) permanece a mesma. O que temos de fazer é elevar a taxa nacional de poupança, não transferir dinheiro de um agente para outro. Nossa taxa nacional de poupança líquida é 2% do PIB, a menor da história americana. Nos anos 90, era de 6%. Nos anos 60 e 70, era de 11%.

Folha - Durante o boom do mercado de ações, dizia-se que o conceito de poupança pessoal estava ultrapassado. Até funcionários do FMI (Fundo Monetário Internacional) admitiam que os EUA haviam atingido uma forma inovadora de poupança, via Bolsas.

Roach - Isso é uma besteira enorme. A bolha levou indivíduos a acreditar que haviam descoberto a chave de uma forma eterna de poupança. Corporações pensaram ter encontrado uma nova forma de se reapresentar aos mercados, na forma eletrônica, multiplicando os canais de obtenção de capital. O problema da bolha é que ela afetou a economia real, criando excessos em todos os aspectos da atividade econômica. Se tivesse se limitado ao preço de ações, teria sido só trágico.

Folha - No entanto, o consumo parece não ter sido afetado pelo estouro da bolha.

Roach - Discordo. Os consumidores americanos que continuam comprando estão se deleitando com uma nova bolha: a bolha imobiliária. Estão refinanciando suas próprias casas, extraindo novos empréstimos e lastreando-os com imóveis ainda supervalorizados. Eu me preocupo, mas o presidente do Fed [Alan Greenspan] diz que está tudo bem.

Folha- O que está ocorrendo com a economia real americana?

Roach - Os EUA estão se recuperando de forma muito lenta e frágil. Trata-se de uma recuperação suscetível a recuos periódicos. Para os EUA, crescimentos de 1% ou 2% significam estagnação. E economias paradas perdem a imunidade para se protegerem de choques externos cíclicos, como o choque de oferta representado hoje pelo aumento do preço de petróleo. O risco de uma recaída recessiva é bastante real. Tivemos o pior Natal em 30 anos.

Folha - O sr. tem dito que o crescimento do déficit em conta corrente dos EUA é insustentável. Por quê?

Roach - Nunca houve na história exemplo de um país cujo déficit externo cresceu indefinidamente. É ainda mais improvável que isso venha a ocorrer com o país mais industrializado do mundo, cuja moeda é a forma principal de reserva de valor. Os EUA têm US$ 500 bilhões de déficit em conta corrente. O mundo nunca teve que financiar um desequilíbrio como esse. A disparidade entre os países com déficits de 5% do PIB, como o dos EUA, e países com superávits, na Ásia e Europa, nunca foi tão ampla desde a 2ª Guerra. Uma convergência entre os resultados em conta corrente dessas economias é só uma questão de tempo. E vai ocorrer ao custo da reavaliação do valor do dólar.

Folha- O que ocorrerá com a demanda global se os EUA corrigirem seu déficit em conta corrente desvalorizando ainda mais o dólar?

Roach - Se o dólar cair como parte de um ajuste em conta corrente nos EUA, e as chances são grandes de isso ocorrer, isso significaria um euro e um iene mais fortes. Isso forçaria a Europa e o Japão a abandonarem suas inércias e estimularem suas economias domésticas. O mundo está exageradamente dependente dos EUA e das exportações. Isso não pode ocorrer em nenhum país. O Brasil, como o resto do mundo, deveria preocupar-se em estimular um consumo doméstico vigoroso.

Folha - O sr. deveria dizer isso ao FMI... O Brasil, no momento, precisa restabelecer as linhas de crédito cortadas por bancos americanos em 2002. O sr. acha que o sistema financeiro americano está em condições de estender novas linhas?

Roach - Os bancos americanos estão hoje em melhor situação que na crise do final da década de 80. Mas herdaram o custo dos escândalos corporativos americanos do ano passado e sofrem o risco de calote nos créditos a consumidores e famílias _a dívida pessoal chegou a recordes históricos nos EUA. Então, diria que não haverá colapso, mas que o sistema financeiro ainda precisa de um tempo para se recuperar. Na verdade, o mundo está numa situação difícil. As pressões deflacionárias que começaram na Ásia se espalharam para os EUA e para a Europa. A resposta clássica para lidar com o risco de deflação são políticas ''reflacionárias' para elevar a demanda. Estão sendo tocadas nos EUA e no Japão. A dúvida é saber se funcionarão.

Folha- Qual será o impacto de uma guerra contra o Iraque sobre a economia mundial?

Roach - Temos que fazer cenários. O primeiro cenário é o de uma ''guerra limpa'', que leve semanas e conduza a uma ocupação militar bem-recebida pelos iraquianos. Esse cenário seria muito bem-recebido pelos mercados. A redução no preço de petróleo decorrente disso corresponderia a um novo corte de impostos nos EUA. O segundo cenário seria uma ''guerra suja'', com complicações durante o conflito ou a ocupação. Nesse caso, o preço do petróleo se manteria elevado por um período maior. Mas o pior cenário é o de uma "não-guerra", com a crise estendendo-se indefinidamente sem um conflito. Isso manteria as incertezas no ar e congelaria os investimentos e o consumo.
 

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