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11/10/2000 - 16h29

Veja íntegra da decisão que limita prestação em 1% do imóvel

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  • Caixa ameaça suspender financiamento da casa
  • Poupadores e trabalhadores vão levar calote, diz Caixa
  • Caixa já tem argumento para recurso

    da Folha Online

    Leia abaixo íntegra da decisão do juiz da 24ª Vara da Justiça Federal, Victorio Giuzio Neto, que limitou a prestação de 2 milhões de mutuários do SFH (Sistema Financeiro da Habitação) a 1% do valor do imóvel:


    Vistos, em Pedido de Tutela.

    Trata-se de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, com base nos Art. 127, 'caput' ; 129, III e IX da Constituição Federal; Art. 6º da Lei complementar nº 75/93 e do Código de Defesa do Consumidor, na proteção de mutuários que celebraram contratos do Sistema Financeiro da Habitação, neste incluídas também as Carteiras Hipotecárias, beneficiados pela regra da equivalência salarial ou comprometimento de renda, mas desguarnecidos do Fundo de Compensação das Variações Salariais que se vêem ameaçados de perderem seus imóveis em razão do descompasso entre o valor das prestações e a evolução do saldo devedor atualizado por juros e índices financeiros em relação aos ganhos salariais.

    Sustenta o Ministério Público Federal a natureza social destes financiamentos habitacionais o que os impossibilita de serem tratados como dívidas financeiras de prestamistas em geral.

    Pede Tutela Antecipada a fim de que os Réus, no território nacional, (afastada, portanto, a Lei nº 9.494/97) sob forma de obrigação de fazer, cumpram as regras da equivalência salarial nas prestações em todos os contratos firmados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, vedando-se a hipótese de qualquer aumento por índice diverso; que eventual resíduo no término do contrato seja refinanciado respeitados os prazos e condições do contrato original, afastando-se normas administrativas que limitem o prazo, imponham valores máximos ou pagamento imediato do resíduo; que a variação das prestações seja sempre com base na equivalência salarial, afastados os índices de aumentos reais, comprometimento de renda ou a aplicação do CES, índices monitorados fictícios ou inexistentes ganhos de produtividade; que se respeitem os critérios do SFH afastando-se o enquadramento no sistema mais gravoso ao mutuário (SFI) ou condicionando a renovação à adoção deste novo sistema; que no recálculo do resíduo seja abatida 50% do valor da dívida ou outra concessão que venha a ser oferecida no âmbito do SFH para os casos de liquidação à vista; que no caso de desistência o mutuário possa se desonerar da dívida mediante a entrega do imóvel ao agente financeiro; que os mutuários que sofreram execução hipotecária perdendo seus imóveis lhes seja dada a integral quitação; que nos casos nos quais o saldo devedor foi quitado por seguradora, eventuais prestações em atraso não cobertas sejam recalculadas com base na equivalência salarial e, finalmente: que os agentes financeiros promovam a exclusão do nome dos mutuários em atraso dos cadastros de devedores como o SERASA, SCPC, etc.

    Ainda, que seja fixada multa no valor de R$ 10.000,00 para cada mutuário que venha a ser lesado por não cumprimento de qualquer das obrigações acima.

    Juntada documentação pertinente.

    Instada a União Federal a manifestar-se nos termos do Art. 2º da Lei 8.437/92, abordou ela os seguintes aspectos: 1º) quanto à antecipação da tutela: a) ausência de prova inequívoca da urgência b) ausência de ameaça de lesão gravíssima aos substituídos; c) impossibilidade de reversão da providência requerida no caso de improcedência da ação e d) inexistência de abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório a justificá-la; 2º) quanto à competência, dos os efeitos da decisão liminar limitar-se à circunscrição territorial de jurisdição do órgão prolator; 3º) quanto à eficácia, de sujeitar-se ao duplo exame obrigatório; 4º) impropriedade da Ação Civil Pública para a edição de norma legal; 5º) ausência de legitimidade ativa do Ministério Público Federal na defesa dos interesses individuais e 6º) ilegitimidade 'ad causam' da União para figurar no pólo passivo da ação.

    É o relatório. D E C I D O

    Como já observado em despacho preliminar, a vivência deste Juízo no exame de inúmeras ações individuais nas quais esta lide transita - reajuste de prestações de contratos habitacionais - tem revelado o imenso drama em que vivem mutuários cujos salários não conseguem acompanhar o crescente ritmo no valor de prestações, reajustadas por índices diversos dos que neles são aplicados.

    Pior, com reajuste pela Taxa Referencial, transfere-se ao mutuário o ônus de buscar a recondução da prestação à seu valor correto, mediante a prova, à seu cargo, de haver recebido reajustes salariais inferiores, nominando-a, eufemisticamente, de direito de requerer a revisão, com isto escamoteando a virtual faculdade outorgada ao Agente Financeiro de cobrar prestações pelo índice que melhor lhe favorece ou, noutras palavras, permitir esta cobrança, deixando ao mutuário o ônus de, permanentemente, postular sua correção, nisto raramente contando com a boa vontade dos agentes financeiros, além da rapidez e simplicidade desejáveis.

    Esta situação tem proporcionado os seguintes tipos de problemas: de um lado agentes financeiros estruturados para operarem apenas no mercado financeiro vendo-se obrigados a administrar imóveis, sejam aqueles retomados como os que, simplesmente abandonados por não verem os mutuários, nem de longe, hipótese de poderem pagar as prestações, encontram-se invadidos quando não abandonados ou depredados; as despesas condominiais não pagas pelos Bancos leva-os, amiúde, à condição de réus em ações de cobrança desta despesa; aos demais condôminos do prédio é imposto o ônus de suportar estas despesas até o desfecho destas ações; a delicada harmonia que deveria imperar nestes condomínios resulta severamente afetada; a desvalorização dos outros apartamentos no mesmo prédio mesmo sem problemas torna-se inafastável; famílias destruídas atormentadas por dívidas impagáveis, no mais das vezes, jovens casais em começo de vida, vêem ruir por terra seus sonhos; pessoas honradas se deparam, por uma situação contingencial de perda de emprego ou mesmo mantendo-os à duras penas, cobertas pela infâmia de caloteiros em serviços de proteção ao crédito por não conseguirem pagar prestações da casa própria; enfim, uma situação de evidente tensão social que urge ser evitada, sob pena de se ver surgir, como conseqüência inevitável, movimento semelhante ao dos sem terra, premidos pela inércia na implementação de soluções eficazes ao drama que vivem.

    Neste último caso, a imprensa destaca na data de hoje em sub-títulos de notícia sobre o tema: 'para especialista, ação mais eficiente (do Poder Público) criaria empregos, reduzindo fileiras do MST; Secretário (do governo do Estado) defende seguro para produção; Subsídios poderiam evitar o êxodo' e no texto da matéria, a constatação da insuspeita Secretaria da Agricultura de São Paulo: 'o crédito está fluindo bem para os médios e grandes produtores mas não para o produtor familiar: ele não está conseguindo superar as exigências burocráticas dos bancos ou está com medo de se endividar porque não há seguro da safra' ... na instalação do assentamento cada família recebe uma ajuda oficial de R$ 25,4 mil. São os cerca de R$ 9,5 mil que o governo gasta, em média, na compra da terra mais os empréstimos para estruturação do projeto, custeio, investimento e construção de moradia. Esses R$ 25,4 mil são pouco mais do que os US$ 11,5 mil que os agricultores dos países mais ricos recebem por ano como subsídio regular à produção...' (GN) e mais adiante 'Nos Estados Unidos, segundo seu Departamento de Agricultura, 47% da renda criada pela agricultura em 1999, foi proveniente do pagamento direto do governo aos agricultores. 'Eles subsidiam porque têm consciência de quem sem isto haveria um êxodo rural para as cidades e problemas muito mais caros de resolver...

    No que se refere ao 'thema decidendum', no último sábado (23/09), veiculou-se a notícia de implantação pela Caixa Econômica Federal - CEF, do 'Programa de Arrendamento Imobiliário Especial com opção de compra visando beneficiar ocupantes e ex-mutuários de cerca de 330.000 imóveis que teriam sido arrematados, retomados ou recebidos em pagamento de financiamentos concedidos (a quantia de imóveis é, por si só, assustadora, considerando que constitui uma pequena parcela dos já retomados) ... 'São alvos prioritários os empreendimentos classificados como problemas, ou seja, que contam com mais de 60% ocupados irregularmente por terceiros. O mutuário original desapareceu há muito tempo e o imóvel já está no segundo ou terceiro ocupante sem que ninguém pague à Caixa' disse a diretora... 'o ocupante pagará, mensalmente, 1% do valor da avaliação do imóvel no mercado - sem qualquer relação com o financiamento concedido anteriormente para a construção do imóvel e muito menos com o saldo devedor não pago pelo mutuário original... 'Na avaliação dos técnicos da Caixa, o Arrendamento também tem caráter social pois poderá beneficiar o ex-mutuário que perdeu a propriedade do imóvel por inadimplência'.

    A Constituição Federal, despojada de qualquer pretensão poética visando enlevar o espírito dos operadores de direito, deixa claro princípios a serem observados, irresistivelmente, pelos juízes, dentre os quais, à par de preservar-se a dignidade da pessoa humana, os seguintes:

    1º) constituem objetivos fundamentais do Brasil: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais; promover o bem de todos. (Art. 3º, I a IV)

    3º) a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. (Art. 5º, XXXV)

    4º) ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. (Art. 5º, LV)

    5º) o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. (Art. 5º LXXIV)

    6º) São direitos sociais a educação a educação, a saúde, o trabalho, a moradia... (Art. 6º, a moradia nele incluída pela EC nº 26 de 14/02/2000)

    Em matéria do Sistema Financeiro da Habitação, a finalidade social e as exigências do bem comum são, sem sombra de dúvida, os elementos de interpretação e aplicação por excelência.

    Nos contratos habitacionais nossos Tribunais têm reiteradamente afirmado o sólido entendimento de que uma vez estabelecido na avença originária a amortização da dívida de acordo com o P.E.S. ou, mesmo no Plano de Comprometimento de Renda (PCR), o Agente Financeiro não pode exigir prestações majoradas por fatores superiores àqueles correspondentes aos da variação salarial da categoria profissional na qual o mutuário se insere.

    A exigência de reajustes com base na Taxa Referencial, por outro lado, é comportamento normal e uniforme das instituições bancárias, fato notório que dispensa prova pois reafirmado em inúmeras defesas, à pretexto do agente financeiro não poder receber taxa menor que a destinada a remunerar a fonte dos recursos empregada nestes financiamentos. Mais não fosse, o próprio Poder Público, ao não coibí-la de imediato como fez com as mensalidades escolares, por exemplo, terminou, quando não por incentivá-la, pelo menos, com sua inércia, implicitamente, a permiti-la.

    E contratos de mútuo voltados à aquisição de moradia, ainda que sujeitos à forte intervenção do Poder Público que tem estabelecido as condições do financiamento visando deles afastar o resultado negativo do exercício da ampla liberdade contratual condensado magnificamente na frase de Lacordaire que se tornou famosa: 'entre o fraco e o forte é a liberdade que escraviza e a lei que liberta' com a experiência demonstrando, muitas vezes cruelmente, seu acerto e, idealmente, proporcionar uma igualdade entre as partes: de um lado poderosas instituições financeiras e de outro hipo-suficientes mutuários na conquista do atávico sonho da casa própria, cujo irresistível apelo é tão bem explorado pela mídia e que, rapidamente o vêem transformado no pior dos pesadelos, tipificam, sem dúvida, relações de massa qualificadas de imenso alcance social tornando-as aptas a merecerem proteção através desta espécie de ação.

    Efetivamente estas relações uniformes que se travam em massa não poderiam estar sujeitas aos princípios da liberdade contratual dentro do 'primado da vontade individual' florescente na sociedade atomística do século passado, proporcionadora de conhecidas e severas injustiças.

    Não há como negar que cobranças de prestações no âmbito de sistema financeiro seja em contrato firmado sob cláusulas da regra da equivalência salarial como com base no comprometimento de renda e até mesmo sob a Carteira Hipotecária, devem conservar, no curso do tempo, ainda mais porque eficazes durante um longo prazo que pode chegar a 32 anos, um equilíbrio tal no qual se preserve relativamente a situação que as partes se encontravam no início do contrato.

    Se tal equilíbrio vem a ser violentamente alterado em favor de uma das partes, estará ela, indevidamente, locupletando-se da outra. Por isto, como no período de inflação, forçar o credor a receber apenas o valor histórico da dívida desprezando a correção monetária seria inadmissível (por consistir pagamento à menor), obrigar-se o devedor, inexistente a inflação, suportar prestações acrescidas de uma taxa de remuneração que não representa uma correção da moeda, mas, ao contrário, um ganho positivo, há de ser tido igualmente, como inadmissível, por evidenciar pagamento a maior.

    Nos casos da Carteira Hipotecária, supostamente dirigida à uma clientela de maior poder econômico, no mais das vezes em contratos firmados com Bancos Particulares, a questão tem sido solvida com esteio no pacta sunt servanda, relutando-se a aceitação, a não ser em hipóteses excepcionais, da intervenção judicial visando impor equilíbrio econômico.

    É fato que esta recusa consolidou-se voltada a afastar a discussão de prejuízos decorrentes da histórica inflação, tendo por base a experiência concreta de que, com ela convivendo o país durante anos, não havia como justificá-la imprevisível pois, permitia, inclusive, o emprego de taxas de juros acrescidas de 'spread' com base em não raras perdas monetárias decorrentes de expurgos da inflação, com a qual podiam os credores, com mediana cautela, evitar, como evitaram, grandes prejuízos.

    Todavia, se a inflação revelou-se outrora como fenômeno imprevisível, a estabilidade da moeda na qual ora se convive, notadamente neste longo prazo, é absolutamente inédita, chegando a exigir, frequentes esforços do governo em erradicar uma virtual cultura traduzida no arraigado hábito de, periodicamente, se aumentar preços.

    Seja por ou apesar de, e ao Juiz não é dado desconhecer, a reconhecida crise econômica pela qual passa o país não tem permitido a ninguém aumentar seus ganhos com acréscimos nem mesmo em ínfimos percentuais positivos e, em se tratando de salários, a dura realidade demonstrando que até mesmo a reposição da pequena inflação tem proporcionado intermináveis dissídios. E não só pois respeitáveis categorias profissionais como a do funcionalismo público encontram-se sem qualquer reajuste há seis anos e sem perspectiva de, a curto prazo, verem tal situação reverter-se.

    Exigir-se neste quadro econômico, que o reajuste de prestações da casa própria se faça de acordo com índices muito superiores aos que o mutuário consegue obter, é condená-lo, antecipadamente, à desonra da inadimplência.

    E não há aqui espaço para se argumentar com a intocabilidade do princípio do 'pacta sunt servanda' pois, não se admitindo que alguém, no uso de suas faculdades mentais normais, contrate a própria ruína ou miséria, (o direito, inclusive, repudia a hipótese) 'prima facie', nos contratos em que se possa visualizar presente esta lesão despropositada - e os há - deve-se buscar afastá-la, até como forma de permitir a sobrevivência do contrato.

    Por outro lado, a percepção do problema da injustiça social, que se reflete no plano do processo, obriga ao abandono do arcaico conceito de igualdade da época da revolução francesa que tantas injustiças concretas produziu, para a tomada, dentro da perspectiva de uma igualdade real, do conceito da igualdade substancial.

    Arruda Alvim, referindo-se a Alan D. Cullison, lembra que 'enfatiza-se a imprescindibilidade de um 'descriptive approach', que traduzido em outros termos, quer significar a necessidade de uma re-observação da realidade, para vir a se concluir que ela não é aquilo que foi suposto por legisladores de épocas passadas, nem é hoje aquilo que foi admitido por juízes de outras eras'. Daí a necessidade do processo realmente ser repensado para, dentro da nova realidade da sociedade de massa, cumprir com sua função, já celebrizada por Chiovenda há muito: 'de dar a quem tem um direito, tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter.'

    A existência, muitas vezes não lembrada, da verdadeira realidade do Brasil, dos seus grandes bolsões de miséria e pobreza, magnificamente observada por Caetano Veloso, no que veio a transformar-se em hino de São Paulo: 'do povo oprimido nas vilas, nas filas, favelas, da força da 'grana' que ergue e destrói coisas belas' descreve perfeitamente o quadro que aqui se apresenta, de um lado um povo oprimido e de outro, o poder financeiro que tanto permite como destrói coisas belas, a exigir a prevalência do princípio da isonomia substancial obtível com o alargamento do espectro de admissibilidade das 'class actions'.
    Não há como considerar as ações coletivas como idôneas e aptas à ensejar seu manejo; seja-nos permitida uma figura de retórica: quando destinadas ao exame de conteúdo de salsichas do 'cachorro quente', nisto visualizando-se o interesse difuso da proteção da saúde pública; para amesquinhar-lhes o verdadeiro sentido, e negá-las em ação voltada ao conteúdo de contratos da casa própria, em quadro que se revela preocupante não apenas aos mutuários, mas também para os agentes financeiros, em face do severo aumento do nível de inadimplência.

    Qual seria o interesse difuso mais importante que a indisponibilidade da dignidade da pessoa humana; a paz social e evitar que mais pessoas sejam forçadas a ocupar os baixios de viadutos e outros espaços públicos, impelidas pela perda de seus lares?

    Em relação à antecipação tutelar, a questão reside na celeridade do processo como a que mais de perto significa o sentido da verdadeira efetividade da justiça e problema que mais aflige ao jurisdicionado. Com efeito, a morosidade do processo, como é intuitivo, estrangula os canais de acesso à tutela jurisdicional dos economicamente mais débeis.

    E o acesso à justiça que deve ser encarado como um direito fundamental - um dos mais básicos direitos do ser humano do qual nossa Constituição Federal não se olvida instigando a proteção até mesmo contra a ameaça de lesão - exige e supõe um sistema moderno e igualitário que possa efetivamente garantir e não apenas proclamar os direitos de todos.

    Daí não se poder, obstinadamente, pretender conservar o processo judicial atrelado à figuras processuais desenhadas em outras épocas pois se outrora o ritmo mais lento das mudanças sociais consentia na utilidade de uma prestação jurisdicional mais tardia, o impulso acelerativo referido por Alvim Tofler, (O Choque do Futuro e a Terceira Onda) observável na vida social e econômica deste nosso tempo, torna inevitável exigir-se-lhe semelhante agilidade a fim de se tornar um efetivo instrumental de realização do direito.

    E aqui nos referimos, especificamente ao Direito pois, se a cultura inspiradora de nosso sistema jurídico elegeu a Lei como o mais importante veículo para enunciar regras sociais, nela não se esgota, todavia, o Direito que é dinâmico e enquanto aquela conserva em seu corpo as condutas convenientes à classe dominante em determinado momento histórico, o Direito tem o compromisso de acompanhar as transformações sociais. Em suma, o Direito não cabe na estreiteza da lei.

    Nos termos do Art. 81, inciso III, do Código de Defesa do Consumidor, os interesses ou direitos individuais homogêneos definidos como aqueles direitos subjetivos perfeitamente individualizados, podem ser tutelados mediante cognição judicial centralizada em um único processo. Isto porque, tal dispositivo ampliou a abrangência da Lei 7.347/85, apenas contemplando os direitos do consumidor e os relativos ao meio ambiente, indivisíveis por definição conceitual. No caso, a situação se mostra dotada de elementos de uniformidade e aglutinação de uma extensa e carente classe social não só apta a permitir como até mesmo recomendar o exame sob prisma coletivo.

    Reconhece-se, portanto, a legitimação ativa do Ministério Público Federal na defesa de direitos individuais homogêneos, mesmo se apresentando como direitos patrimoniais divisíveis e sujeitos à disponibilidade.

    Embora posta em dúvida pela União em sua manifestação, à pretexto do disposto no Art. 127 da Constituição Federal de estar aquela Instituição voltada para a defesa de interesses sociais ou individuais indisponíveis, como bem observou o Juiz José Eduardo Santos Neves, no exame de questão análoga, 'ao conferir o Art. 82 do CDC legitimidade para o Ministério Público ajuizar ações coletivas na defesa de direitos difusos coletivos e individuais homogêneos, teve como pressuposto o inquestionável o interesse social no ajuizamento de ações coletivas. O que está em causa não é a disponibilidade do interesse específico ou determinado, individualmente considerado, mas, a indisponibilidade desses direitos considerados em seu conjunto, o que os altera em sua essência, pois, pela lei dialética da emergência do novo, o excesso transforma a natureza da quantidade, emprestando-lhe outra qualidade'.
    Neste sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso:
    'Já no que concerne aos interesses individuais homogêneos, o seu trato pessoal coletivo não decorre de sua natureza (que é individual) e sim de duas circunstâncias contingenciais, a saber: a) de um lado, o expressivo número de pessoas integradas no segmento social considerado (p. ex. pais de alunos de escolas particulares), inviabilizando o trato processual via litisconsórcio (que seria multitudinário), especialmente agora, como antes acenado, em face da reinserção no processo civil brasileiro, do litisconsórcio facultativo recusável (CPC, Art. 46, parágrafo único, redação da Lei 8.952/94); b) de outro o fato desses interesses derivarem de origem comum, o que lhes confere uniformidade, recomendando o ajuizamento de ação coletiva, seja para prevenir eventuais decisões contraditórias, seja para evitar sobrecarga desnecessária no volume de serviço judiciário.

    Portanto, especificamente no que tange aos interesses individuais homogêneos, não fossem essas circunstâncias episódicas antes lembradas e não haveria óbice técnico-processual em que fossem tais interesses reconduzidos às fórmulas litisconsorciais conhecidas, com correspondentes alterações no tipo de jurisdição (que seria singular) e na ação (que seria individual, com cúmulo subjetivo de pólo ativo). Suponha-se, por exemplo, uma ação coletiva movida por associação de pais de alunos, com base no CDC, objetivando a fixação de critério de reajuste de mensalidades: a alternativa ao ajuizamento da ação coletiva seria a divisão dos interesses em grupos litisconsorciais, com outorga de procuração a advogado; mas os transtornos e inconvenientes de tal 'solução' transparecem tão nitidamente, que, como salientado, o próprio legislador sinalizou, recentemente, em sentido contrário. (CPC, Art. 46, parágrafo único, nova redação)

    Nesse sentido, José Rogério Cruz e Tucci afirma: 'à figura clássica do litisconsórcio, como instituto tecnicamente idôneo para dar ao processo uma conotação coletiva, delineia-se inapropriada e inadequada ou mesmo impraticável diante da proteção jurisdicional reclamada pelos interesses supra-individuais.' (Ação Civil Pública, diversos autores, coordenação Édis Milaré, pp 440/441; no mesmo sentido Hugo Nigro Mazzili, das Ações Coletivas em Matéria Coletiva de Proteção ao Consumidor, in Justitia, vol. 163, Apud, Sentença proferida no Processo 93.0002350-0)

    Portanto, a restrição de abrangência da ação civil pública para limitá-la tão somente aos interesses trans-individuais puros de defesa do patrimônio público, dos bens coletivos e dos interesses difusos, afastando de seu campo de abrangência qualquer litígio no qual se possa visualizar, mesmo que de maneira tênue, interesses individuais quer sejam eles homogêneos ou não, deve ser reputada como voltada apenas e tão somente para impedir apenas a substituição da vontade individual pela do 'Parquet', nunca quando voltada a impedir a proteção contra abusos perpetrados àqueles que, sabidamente, por hipo-suficiência econômica, jamais terão condições e buscar uma efetiva proteção de seus direitos.

    Seria um amesquinhamento cruel e perverso da Ação Civil Pública, para anulá-la como eficiente e genuína proteção de direitos dos hipo-suficientes, e mais ainda, desconhecer que as soluções do direito privado tradicional, assim como as do processo civil ortodoxo não mais atendem as necessidades atuais dos jurisdicionados.

    No caso, em princípio, sentença impondo uma obrigação de fazer, revela-se suficiente para atender o desiderato da querela, pois embora envolva a lide o exame de diversos aspectos, inclusive legitimidade do emprego de determinada taxa, de resto, cuja aplicação foi afastada pelo Eg. Supremo Tribunal Federal, no âmbito do SFH, de contratos anteriores por proteção devotada ao direito adquirido, e, nos posteriores, acaso não expressamente indicada nos contratos, em respeito às regras de interpretação a serem observadas nestes contratos, e por fim, não havendo, qualquer campo de discricionariedade reservado ao Poder Público quanto à imposição de índices de correção monetária nestes contratos, a ação coletiva, se apresenta, nesta primeira análise, com conteúdo admissível.

    No que se refere à antecipação da tutela em si, o nosso sistema jurídico impõe que decisões judiciais sejam proferidas à base da lei, mas na técnica de aplicação sempre se contém um propósito de solução justa. Regras de hermenêutica têm sempre este sentido, buscam orientar o intérprete, pelo menos, a resultados razoáveis.

    No caso, tratando-se de dano presente, verificável a cada mês, a negativa da antecipação da tutela terminaria por provocar o perverso efeito de permitir que os Réus, mediante o simples exercício de faculdades processuais que dispõem, somadas às conhecidas deficiências do Judiciário Federal, reconhecidamente assoberbado por invencível acúmulo de processos, prosseguissem na cobrança de valores em excesso, impondo constrições aos mutuários visando o recebimento destes créditos.

    Vista sob outro ângulo, a antecipação da tutela no caso, vem atuar, profilaticamente, como irresistível incentivo ao célere andamento do feito, na medida em que transforma a demora de seu desfecho, em algo em benefício da parte hipo-suficiente na lide.

    Isto posto, reputando-se presente o 'fumus boni iuris' na alegação de que as prestações vêm sendo cobradas em valores excessivos pelo indevido emprego da Taxa Referencial de Juros nas prestações e do saldo devedor, tornando impossível seu pagamento e o 'periculum in mora' na circunstância do atraso na quitação das prestações, além dos próprios consectários decorrentes da mora, trazer como conseqüência a execução extrajudicial ou judicial da garantia e a arrematação do imóvel, sua exigência de desocupação e outros consectários, impõe-se a antecipação da tutela, ainda que sem a extensão requerida pelo Ministério Público Federal.

    Quanto aos Réus, exceto os ligados a Governos, os demais têm apresentado em seus balanços invejável saúde financeira acompanhada de lucros crescentes para alegria e gáudio de seus acionistas e embora deles não se possa exigir generosidade cristã ou comportamentos paternalistas para com seus devedores, tampouco se há de admitir que se transformem em desumanos algozes impelidos por exigências de balanços contábeis, tal qual o imortalizado personagem Shylock de Shakespeare na obra 'O Mercador de Veneza' a exigir de um tribunal que, mesmo admitindo o direito do 'banqueiro' obter, pelo não pagamento da prestação, sua 'libra de carne do corpo do devedor', o impede, todavia, de verter uma gota do sangue sequer, por exceder a garantia.

    Urge neste momento, portanto, criar-se uma solução urgente para a situação aflitiva dos mutuários. Para os Réus, certamente isto se apresentará no futuro, senão por si próprios, pelo inegável talento e preocupação da equipe econômica do Governo com o Sistema Financeiro, capaz de levá-lo a invejável conceito internacional, o que, lamentavelmente, não tem sido acompanhado em outros indicadores do país que permanecem situando-o abaixo de países do continente africano. (distribuição de renda)

    Portanto, seguramente uma solução rápida lhes preservará a invejável saúde, o mesmo não se podendo dizer de mutuários, após os cinco anos de Plano Real.
    Em relação ao campo de abrangência da presente decisão, oportunas as considerações de Nelson Nery Jr. *

    A Lei nº 9494/97, que modificou a redação do Art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, para impor limitação territorial aos limites subjetivos da coisa julgada, não tem nenhuma eficácia e não pode ser aplicado às ações coletivas... Pessoa divorciada em São Paulo é divorciada no Rio de Janeiro. Não se trata de discutir se os limites territoriais do Juiz de São Paulo podem ou não ultrapassar seu território atingindo o Rio de Janeiro, mas quem são as pessoas atingidas pela Sentença Paulista... De outra parte continuam em vigor os Art. 18 da LAP e 103 do Código de Defesa do Consumidor que se aplicam às ações fundadas na LACP por expressa disposição do CDC 90 e LACP 21. Foi negada medida liminar na ADIn ajuizada contra a Medida. Provisória 1570/97 que foi convertida na Lei 9.494/97, que modificou a redação do Art. 16 da LACP (STF, Pleno, ADIn 1576-1, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 16/04/1997, maioria., DJU 24/04/1997, pág. 14914). A ADIn pende de julgamento. (ob. cit. pág. 1541)

    Quanto à extensão da liminar:

    Em se tratando de ação coletiva, cuja sentença fará coisa julgada 'erga omnes' ou ultra partes, conforme o caso (LACP, art. 16; CDC, art. 103) a liminar também deve produzir seus efeitos de forma estendida, alcançando todos aqueles que tiverem de ser atingidos pela autoridade da coisa julgada. Por exemplo, Juiz Estadual pode conceder liminar para ter eficácia no Estado, em outros Estados e no país. A questão não é de jurisdição nem mesmo de competência, mas de eficácia erga omnes e ultra partes da decisão judicial, isto é, de limites subjetivos da coisa julgada... Os fenômenos coletivos estão a exigir soluções compatíveis com as necessidades advindas dos conflitos difusos ou coletivos. (ob. cit. pág. 1532)

    Por fim, em relação à coisa julgada:

    A coisa julgada erga omnes ou ultra partes, faz com que a sentença atinja a esfera jurídica de todos aqueles que estiverem, de alguma forma, envolvidos na matéria objeto da ACP. Por exemplo, a condenação de empresa de convênio médico em obrigação de retirar de seus contratos cláusula considerada abusiva, (CDC, Art. 51) atinge a empresa como um todo, bem como seus associados, estejam onde estiverem no território nacional... (ob. cit. pág. 1540)

    De fato, restringir o âmbito de abrangência da presente decisão aos limites territoriais deste Juízo viria proporcionar a severa injustiça de criar, com base na arbitrária localização geográfica dos mutuários, um grupo especial apto a receber proteção judicial, desconhecendo as mesmas agruras impostas aos demais neste imenso país e o mais grave, pelos mesmos Réus desta ação.

    Acima de tudo seria privilegiar, conceitos ortodoxos do processo desenhados no passado e destinados às lides intersubjetivas, em detrimento da modernização de seu conceito, introduzidas por exigências deste nosso tempo, nesta era da Internet que transformou o mundo na 'aldeia global' de que nos fala Marshall McLuhan e que ao mesmo tempo que impõe uma interdependência entre os países, tende a exigir, pela maior expectativa social decorrente do melhor nível de informação, soluções tão avançadas como as adotadas nos mais desenvolvidos.

    Por fim, em relação à ilegitimidade 'ad causam' argüida pela União, inoportuno seu exame neste momento, em que apenas instada a manifestar-se sobre a tutela requerida e ainda não integrando, tecnicamente a lide.

    DECISÃO em tutela antecipada.

    Por tais motivos, DEFIRO a TUTELA ANTECIPADA, todavia, neste momento, visando ajustá-la ao escopo geral de jurisdição e permitir uma efetiva atuação do processo, sem prejuízo de alterá-la com a vinda das contestações, para que os Réus não realizem a partir da intimação desta, a negativação do crédito dos mutuários no SCPC e SERASA, e outras entidades congêneres de outros Estados, pelo não pagamento de prestações em valores superiores àquele efetivamente devido mediante a aplicação dos índices de reajuste da categoria salarial à qual pertencem. Nos casos de leilões, a fim de que não haja desperdício de atos já levados a efeito, como publicações, atuação de agentes fiduciários leiloeiros etc., que os mesmos Réus não realizem o registro das respectivas Cartas de Arrematação e se abstenham de quaisquer constrições para a desocupação de imóveis pelos Mutuários.

    Aos mutuários fica assegurado, em caráter provisório, nos contratos firmados pelo PES, PCR, na Carteira Hipotecária ou sob outras denominações destinados ao financiamento da casa própria, o pagamento de prestações reajustadas pelo índice da categoria profissional à qual pertencem, cabendo aos próprios bancos obterem dos sindicatos estes índices; no caso dos autônomos ou daqueles que não integram uma categoria profissional específica, o reajuste deverá ser com base nos índices de inflação do Real (IPCr). O valor das prestações mensais, todavia, não poderá ser inferior a 1% (um por cento) da avaliação de mercado do imóvel no caso do valor da prestação cobrada ser superior.

    Fica esclarecido que a presente tutela não obriga qualquer mutuário, querendo de realizar o pagamento de prestações cobradas pelos Agentes Financeiros se assim entender mais vantajoso e busca apenas assegurar àqueles que, deparando-se com severas dificuldades nestes pagamentos, estejam na iminência de sofrer restrição no crédito e outras constrições decorrentes da mora.

    Não se visualiza, por outro lado, na presente decisão, causa de grave comprometimento na economia do país, por não se estar reconhecendo qualquer vantagem extraordinária, mas tão somente permitindo que, no curso desta ação, seja respeitada e preservada a dignidade dos mutuários do Sistema Financeiro da Habitação.

    Omite-se, por hora, sem prejuízo de se vir a fazê-lo no futuro acaso materializada resistência a recomendá-la, a imposição da multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por mutuário lesado em caso de descumprimento desta ordem, ficando o Ministério Público Federal, todavia, encarregado de documentar, em nível nacional, estes casos.

    Intime-se por Mandado e com urgência, para cumprimento a Caixa Econômica Federal - CEF; o Banco BRADESCO S/A; o Banco ITAÚ S/A; o Banco do Estado de São Paulo - BANESPA; o Banco SUDAMERIS Brasil S/A; o Banco AMÉRICA DO SUL S/A; o Banco HSBC BAMERINDUS S/A; Nossa Caixa Nosso Banco S/A; o Banco UNIBANCO - União de Bancos Brasileiros S/A; o Banco SAFRA S/A; o Banco SANTANDER S/A; o Banco MERCANTIL DO BRASIL S/A; o Banco REAL S/A e o Banco de CRÉDITO NACIONAL S/A, nos endereços indicados na inicial.

    Cite-se, em seguida, com cautelas de praxe.

    Publique-se na íntegra.

    São Paulo, 29 de setembro de 2000

    VICTORIO GIUZIO NETO
    JUIZ FEDERAL
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