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30/09/2002 - 13h06

Escolas adotam letras de rap para ensinar realidade social

DÉBORA YURI
da Revista da Folha

Chico Buarque e Caetano Veloso nas aulas de literatura, Bob Dylan e John Lennon nas lousas do ensino fundamental: depois da introdução da MPB e do pop/rock consumidos pela classe média, agora é a vez de o lirismo da periferia ganhar voz nos bancos escolares -e não só do ensino público.

"Levar o rap para a sala de aula é prática frequente hoje entre os professores de português da rede particular", conta Adriano Guilherme de Almeida, 27, professor de 6ª e 7ª séries do colégio Oswald de Andrade/Caravelas, no Alto de Pinheiros, que usa letras de Mano Brown, o líder dos Racionais MC's, para ensinar aos alunos como se constrói a linguagem poética.

Brown, que nasceu e até hoje mora no Capão Redondo, é autor de letras de qualidade inquestionável, mas dificilmente poderia ser encarado como um exemplo pedagógico a ser seguido.

Sua música é repleta de palavrões -todos os imagináveis estão no último CD da banda, o duplo "Nada Como um Dia Após o Outro Dia"-, fala de amigos presidiários, ameaças de morte, consumo e venda de drogas e narra detalhamente assaltos, com todas as gírias e erros de português comuns na periferia. Sua denúncia da marginalidade e da exclusão social da favela vem pontuada por doses maciças de preconceito contra mulheres, endinheirados, policiais. Virou o disco brasileiro mais vendido e comentado de 2002.

"Música boa se impõe", afirma a socióloga Marília Sposito, 54, professora da Faculdade de Educação da USP. "Além disso, qualquer estilo que tenha um teor de contestação e inconformismo pega o imaginário jovem, desde o jazz e o rock. A classe média se vê atraída pela cultura 'underground', fora do padrão. É a necessidade de consumir algo que não é totalmente aceito pela sociedade", acredita.

É essa atração que os professores aproveitam. "Você 'captura' o aluno com mais facilidade porque o universo marginal chama a atenção dos garotos da classe média-alta", conta Adriano, que em 2000 coordenou na 8ª série um trabalho sobre a periferia baseado no livro "Capão Pecado", de Ferréz, outro morador do violento bairro. A obra foi eleita pelos próprios estudantes como objeto de estudo, entre "O Estrangeiro", de Albert Camus, "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector, e "On the Road", de Jack Kerouac.

O rap veio na esteira da onda. "É o som hoje em dia", afirma Lucas Lobo Campanhole, 18, que está no 3º ano do ensino médio e se considera um "praticante". "Já tive um grupo, ouço esse estilo o dia inteiro. Acho que o único jeito de mudar alguma coisa no Brasil é a gente se unir com a periferia", discursa.

A associação Lucas-hip hop seria impensável anos atrás. Morador do Itaim, estudante de escola particular em Perdizes, sócio do clube Pinheiros, frequentador do Guarujá, ele encarna a figura do "playboy" desprezado pelos "rappers que vieram do sofrimento", como se identificam os Racionais.

Mas a interação de mundos tão diferentes é sempre benéfica para uma cabeça em formação, diz o sociólogo Juarez Dayrell, 47, professor da Faculdade de Educação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

"Ouvir uma letra de rap é fazer uma leitura de mundo. No caso, o garoto da classe média faz uma leitura de um mundo diferente do seu, e isso é positivo porque lhe mostra a diversidade", explica ele, autor de tese sobre o hip hop e a socialização da juventude.

Yara Carmona, 49, coordenadora de artes e cultura da Escola da Vila (Butantã e Morumbi), concorda. "Mostrar à juventude de classe média que o mundo é maior do que o mundinho confortável deles de shopping e videogame é uma tendência forte da educação atualmente." O sociológo ressalva, porém, que nem todo garoto bem de vida absorve a mensagem real: "Muitos entram na onda pelo modismo".

Lucas, o rapper do Itaim, confirma: "Conheço caras que moram em casas maravilhosas no Morumbi, ligam um rap alto no carro, fazem pinta de malandro e começam a passar droga na escola, a assaltar na rua, tudo para aparecer".

Cultivar a imagem de "truta" (camarada, na gíria dos "manos" do hip hop) também rende dividendos. "Se você começa a dançar break no intervalo, as pessoas te respeitam, querem te conhecer, você fica popular", explica Renato Seiki Kiyama, 16, um exemplo de "b.boy" (dançarino de break) que mora na Liberdade.

Tudo vale Os preconceitos machistas das letras dos Racionais não assustam. "Eles estão falando só de um tipo de mulher, não das mulheres em geral", acredita Camila Moraes Queiroz, 16, que já morou na Barra da Tijuca (RJ) e hoje vive em Moema. "E é melhor ouvir isso do que fazer como a maioria, que escuta N'Sync e Capital Inicial", acredita a garota.

Sua amiga Stacy Giovanna Bess, 16, conta que cansou de namorar roqueiros cabeludos e tatuados e pede, ajeitando os cabelos loiros compridos: "Será que não dá para você arranjar que a gente passe uma tarde com o Mano Brown?".

A turma também minimiza os erros de concordância e os palavrões, cantados aos montes pelos Racionais. "Quem fala português certo hoje?", desafia Diogo Tadeu Vargas Horvath, 17, conformado. "Essa é a linguagem da periferia, né?"

A realidade pode não ser bem assim, mas Pasquale Cipro Neto, 47, professor de português e colunista da Folha, diz que o valor educativo das letras não fica necessariamente comprometido com o português errado e as palavras chulas.

"O professor entra como elemento fundamental dessa história, ele precisa saber usar e codificar tudo isso. Esse tipo de linguagem existe, ocupa um determinado território, é uma manifestação linguística legítima", afirma. Pasquale não vê problemas nos palavrões: "É besteira se for gratuito, mas quando é encaixado, no seu lugar devido, ele é válido".

Adriano de Almeida, do Oswald de Andrade, também ressalta a importância do professor. "Se você não tomar cuidado, em vez de ajudar o aluno a ter uma visão crítica do mundo, ele acaba apenas comprando aquela imagem estereotipada do bandido, do marginal."

Ele faz também uma segunda ressalva, dessa vez sobre a cultura propriamente dita -a velha briga entre o erudito e o popular. "Escola é lugar para o velho. Mais do que Mano Brown, a garotada precisa receber o que nenhuma emissora de rádio ou TV oferece: Drummond, Bandeira, Pessoa", diz.

Pasquale prega uma mistura das duas coisas. "O colégio tem de ser aberto. É claro que é necessário falar dos clássicos, mas também é preciso discutir o novo", observa. E o novo, quem diria, chega "da lama, de onde vêm os diamantes", como recita Mano Brown em uma de suas canções mais impressionantes, "Negro Drama".

 

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