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23/01/2004 - 16h36

Para Lévi-Strauss, missão francesa trouxe disciplina

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FERNANDO EICHENBERG
Especial para a Folha de S. Paulo, de Paris

O destino e a carreira de Claude Lévi-Strauss foram decididos num domingo de outono de 1934. Às 9h, o jovem professor, então com 26 anos, recebeu um telefonema de Célestin Bouglé, diretor da Ecole Normale Supérieure, sugerindo que se candidatasse a uma vaga para a cátedra de sociologia da recém-criada Universidade de São Paulo. "Você precisa dar uma resposta definitiva até o meio-dia", alertou.

O episódio é narrado pelo próprio Lévi-Strauss, no início de um dos capítulos de sua célebre obra "Tristes Trópicos" (1955), marco bibliográfico da antropologia contemporânea. A continuação da história é conhecida. O curioso e inquieto professor aproveitou a chance de se aventurar no desconhecido e, no ano seguinte, embarcou no porto da cidade de Marselha, no sul da França, num navio rumo ao Brasil.

Lévi-Strauss lecionou na USP entre 1935 e 1938. O trabalho na universidade não foi sua única ocupação nesse período. Ao final de seu primeiro ano universitário, realizou seu batismo etnográfico ao organizar uma expedição a Mato Grosso, às tribos dos índios cadiuéus e bororos. A experiência acadêmica paulista e a descoberta do Brasil fizeram germinar as primeiras formulações científicas e intelectuais deste que seria o principal antropólogo do século 20.

Lévi-Strauss, 95 anos completados no último 28 de novembro, vestido de um impecável conjunto de terno e gravata, recebeu a Folha na sua sala do Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, no Quartier Latin.

Com a fala lúcida e pausada, e também com matizes de humor, ele relembrou sua participação na fundação da USP e seus primeiros momentos no Brasil. Num tom nuançado de nostalgia e renúncia, Claude Lévi-Strauss diz já não se sentir um homem deste mundo.


Folha - O que fez o senhor aceitar, sem hesitar, o posto na USP?
Claude Lévi-Strauss - Eu imediatamente aceitei a proposta. Não conhecia nada do Brasil, tinha vontade de ver o mundo. Creio que se tivessem me proposto não importa que país distante eu teria aceitado. Mas, naturalmente, desde que fui designado para o Brasil, tentei aprender algo sobre o país.

Folha - O senhor contou que foi, de uma certa maneira, influenciado pelas viagens do escritor Paul Nizan à Arábia, em 1926-27, e do etnólogo Jacques Soustelle ao México, a primeira delas em 1932.
Lévi-Strauss - Era uma época na qual começava-se a saber que jovens filósofos, recém-formados, não estavam condenados a lecionar nas escolas do interior, mas podiam partir em busca de aventuras. O exemplo de Soustelle, que eu conhecia bem, e também o de Nizan, que havia se casado com uma de minhas primas, Henriette Halphen, me mostrou que havia outras possibilidades.

Folha - Em 1935, o senhor partiu num navio para o Brasil. Que lembranças conserva dessa viagem, descrita em "Tristes Trópicos"?
Lévi-Strauss - Éramos três ou quatro no navio, havia ainda comigo Pierre Monbeig e Jean Maugüé. Fernand Braudel viajou para o Brasil alguns meses mais tarde. Mas tinha mais lembranças sobre a viagem quando escrevi "Tristes Trópicos", há 50 anos. Mesmo na época, já havia me esquecido de muita coisa e, hoje, não lembro de mais nada. Se quiser saber algo da viagem, preciso retornar às páginas de "Tristes Trópicos" [risos].

Folha - Quais foram suas primeiras impressões ao chegar à Universidade de São Paulo? Como foi sua primeira semana de trabalho?
Lévi-Strauss - Para mim e meus colegas, foi uma experiência enorme, porque era a primeira vez que tínhamos acesso ao ensino universitário. Éramos professores de liceu [ensino médio]. Fomos escolhidos porque pensavam que éramos capacitados, mas, na verdade, era uma grande novidade, e foi algo emocionante para nós.
Devo dizer que os estudantes com os quais tínhamos contato eram de uma tal gentileza, curiosidade, eles tinham tanto desejo, não diria de aprender, porque já sabiam muita coisa, mas de conhecer de que forma nós os víamos e a seu país, e o que nós poderíamos lhes fornecer para completar seu saber. Foi um contato extremamente fácil. Instantaneamente, estabelecemos amizades com alguns de nossos estudantes.

Folha - O senhor lamentava os modismos no meio intelectual, em detrimento de um real interesse pelo método de trabalho.
Lévi-Strauss - Sim, penso que a única coisa que nós levamos para eles foi um método de trabalho. Eles pesquisavam a torto e a direito, era qualquer coisa. Diria que nós os ensinamos a se disciplinar intelectualmente, sem pensar que, a cada vez que se discutia sobre um tema qualquer, mesmo que bastante limitado, fosse necessário remontar até as origens da humanidade. Foi um trabalho importante, porque tínhamos contato com espíritos bastante vivos, ativos, curiosos, mas intelectualmente indisciplinados.

Folha - O senhor sentiu a responsabilidade de participar da fundação de uma universidade?
Lévi-Strauss - Sim, claro. Mas não podemos esquecer que a missão francesa não era a única, havia professores italianos, alemães. Nós não tínhamos a inteira responsabilidade da universidade.

Folha - O que o trabalho da missão francesa acrescentou ao Brasil?
Lévi-Strauss - Eu penso, sobretudo, no que o Brasil acrescentou à missão francesa [risos].

Folha - Como a experiência na USP influenciou o seu percurso intelectual?
Lévi-Strauss - A América do Sul, o Brasil, eram terras tão desconhecidas para nós como poderiam ser para Cabral, 400 anos antes. Para nós, era como refazer a descoberta do Novo Mundo. Tudo nos ensinava algo, o menor espetáculo na rua, a menor planta.

Folha - À parte o contato com os alunos, que outros encontros o senhor considera importantes nesse período no Brasil?
Lévi-Strauss - Houve outros encontros importantes, certamente. O primeiro que nomearia foi o com Mário de Andrade. Ele era, antes de tudo, um grande escritor, um dos primeiros que li em português. Ele possuía uma enorme cultura e se interessava muito pelo folclore, que é uma parte da etnografia. O primeiro estudo de folclore que realizei foi na companhia de Mário de Andrade, guiado por ele, em feiras e festas de pequenas localidades.
Houve também uma outra pessoa, com a qual estabeleci uma amizade, diria, fraternal, que foi Paulo Duarte. Conheci-o no Brasil, mas continuei a vê-lo como um amigo bastante caro nos Estados Unidos, onde nos refugiamos durante a guerra, ou em Paris, onde ele viveu por muito tempo. Aliás, suas memórias estão ali [aponta para a estante de livros]. Havia ainda outros nomes, como Sérgio Milliet, Rubens Borba de Moraes, Caio Prado Jr.

Folha - A influência francesa era bastante grande na vida acadêmica brasileira, mas, ao longo das décadas, foi substituída pela americana. Essa mudança é ruim? O senhor crê que haja uma crise das ciências humanas na universidade?
Lévi-Strauss - Na época, nós ensinávamos em francês. Todos os estudantes falavam francês. Toda pessoa um pouco culta no Brasil falava correntemente o francês. Os grandes nomes eram Pasteur, Victor Hugo e outros. Evidentemente, isso tudo mudou. E as ciências humanas não estão em crise somente no Brasil, mas na França também.

Folha - O senhor teme pelo futuro da universidade pública com a crescente mercantilização do conhecimento?
Lévi-Strauss - Eu me privaria de fazer previsões sobre um tempo que não vou conhecer. Quando se acredita que as coisas vão numa certa direção, é sempre um outro rumo que elas tomam. A universidade pública já não é mais algo que me preocupa, porque já não me sinto mais deste mundo.

Folha - Após seu primeiro ano na USP, como surgiu a iniciativa de realizar a expedição a Mato Grosso, seu "batismo etnográfico"?
Lévi-Strauss - No lugar de retornar à França para passar as férias, como faziam meus colegas, eu parti para o Mato Grosso, ao encontro dos índios cadiuéus e bororos. Essa viagem eu mesmo organizei. Não havia nenhuma razão para que me dessem alguma atenção. Fui encorajado e ajudado moralmente pelo departamento de cultura de São Paulo e pela diretora do Museu Nacional do Rio, Heloísa Alberto Torres.
O departamento me pediu, inclusive, para inspecionar um sítio arqueológico esquecido ao longo da via das estradas de ferro, do lado de Porto Esperança. Mas era preciso que eu fizesse minhas provas de etnólogo.
O Museu do Homem [de Paris] só se interessou por mim quando lhes trouxe minhas primeiras coleções etnográficas. Tinha intenção de seguir uma carreira etnográfica, e depois dessa primeira viagem e de outras pesquisas em diversas regiões, quis passar quase um ano inteiro em campo. Preparei, então, essa segunda expedição, à região dos nambiquaras, que foi mais difícil de organizar e enfrentou muitos obstáculos.

Folha - Que tipo de obstáculos?
Lévi-Strauss - O clima político havia mudando bastante no Brasil. Eu havia sido enviado pelo Museu do Homem, considerado uma instituição bastante à esquerda, e suspeitavam um pouco de mim. Se a expedição pôde ser realizada, diria que foi graças a Mário de Andrade, que transformou a expedição francesa em expedição franco-brasileira.

Folha - O senhor sentiu, na época, essa suspeita política em relação ao seu trabalho?
Lévi-Strauss - Na época, não me dei conta. Soube disso depois, por diferentes testemunhos, alguns dos quais, aliás, foram publicados no Brasil. Não me recordo o nome, é um nome italiano --de alguém que realizou todo um trabalho sobre os aspectos e os problemas administrativos enfrentados pelas minhas missões. Eu não me dava conta, porque os brasileiros são pessoas extremamente corteses e não diziam exatamente as coisas como eles as pensavam.

Folha - Hoje guarda mais boas ou más lembranças desse período?
Lévi-Strauss - Só restaram as boas lembranças. Antes de tudo, foi o período da minha juventude, e guardamos boas lembranças da juventude. Foram, provavelmente, os anos mais fecundos que conheci na minha vida, porque aprendia algo de tudo.

Folha - Que relação manteve com a USP após sua partida?
Lévi-Strauss - Retornei em 1985, na ocasião de uma viagem oficial que o presidente da República [François Mitterrand] fez ao Brasil. Foi uma viagem bastante breve, de cinco dias. Fui recebido na universidade, que organizou uma pequena sessão, e reencontrei professores aposentados, alguns mesmo que haviam sido meus alunos, o que me fez mensurar o quanto estava velho [risos].

Folha - O que o senhor sentiu quando retornou à cidade?
Lévi-Strauss - Era um outro mundo, não havia nenhum tipo de relação. Havia pedido, na única manhã livre que tive, para rever, não a casa que habitei, porque pensava que ela havia sido destruída, mas, em todo caso, a rua na qual morei. O presidente da República e sua comitiva haviam se hospedado num hotel da rua Augusta, numa extremidade da avenida Paulista, e minha rua estava situada exatamente na outra extremidade da avenida. Entrei no carro e, durante toda a manhã, em todas as horas de que eu dispunha, fiquei bloqueado nos engarrafamentos da avenida Paulista [risos]. Não tinha mais nenhuma relação com o que eu havia conhecido outrora.

Folha - Neste ano, é comemorado também o 450º aniversário de São Paulo. Em "Tristes Trópicos", o senhor diz que, aos seus olhos, a cidade nunca foi feia. Como o senhor definiria São Paulo naquela época?
Lévi-Strauss - Era uma cidade, que por certos ângulos, estava ainda nos séculos 18 e 19. Sedutora e perturbadora era essa espécie de mistura do resto do passado colonial com um modernismo que se desenvolvia à toda velocidade. E isso ainda combinava!

Folha - O senhor sente saudades de algo do Brasil?
Lévi-Strauss - Claro que sinto saudades do Brasil. É da natureza que mais sinto falta.

Folha - Como o senhor vê, hoje, a situação do Brasil?
Lévi-Strauss - É um outro país e outro mundo, não tenho como julgar. Hoje, não sou muito otimista em relação à atualidade do mundo, mas, enfim, me abstenho de fazer julgamentos. Sou pessimista, hoje, em comparação ao mundo que eu conheci e que amei. Esse, sei bem que acabou, não existe mais. Um outro mundo vai tomar o seu lugar, um mundo que eu não conhecerei.
 

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