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12/06/2004 - 06h20

Universidade opta por ricos, diz historiador

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PLÍNIO FRAGA
da Folha de S.Paulo, no Rio

O historiador americano Kenneth Serbin, 44, está numa cruzada contra os "dogmas" acadêmicos nos EUA e no Brasil e identifica um ponto comum no ambiente universitário dos dois países: "a opção preferencial pelos ricos".

Serbin, professor da Universidade de San Diego, na Califórnia, diz que a esquerda brasileira deve enfrentar o dogma de que o ensino público universitário no país privilegia as classes média e alta.

Autor de "Diálogos na Sombra: Bispos e Militares, Torturas e Justiça Social na Ditadura", no qual faz revelações sobre a relação da Igreja Católica com a cúpula militar, o historiador é um dos mais ativos integrantes da Brasa (Brazilian Studies Association). Com sede nos EUA, a entidade é formada por acadêmicos de vários países que se dedicam a estudar o Brasil. A partir de 2006, Serbin presidirá a Brasa, que faz agora no Rio seu sétimo congresso.

Folha - Houve uma mudança no perfil dos brasilianistas. Hoje os microtemas são mais estudados do que os macrotemas. Por quê?
Kenneth Serbin
- Nunca podemos perder a visão global da realidade humana. O macro e o micro vivem numa síntese. Um influencia o outro. Nos últimos anos, a academia deu uma guinada exagerada para o micro. Ou seja, num congresso 20 anos atrás, todo mundo falava da Teoria da Dependência, que Fernando Henrique Cardoso construiu junto com Enzo Faletto. Todo mundo falava de antiimperialismo, revolução, porque o mundo vivia ainda a Guerra Fria. Aos poucos, foram entrando novos temas -- gênero, raça, etnia, discriminação racial--, que hoje predominam.

O dogma da academia na Guerra Fria foi a Teoria da Dependência. Hoje são os microassuntos. Como intelectuais, precisamos sempre estar abertos a novas interpretações, novas metodologias, mas também resgatar o bom de velhas idéias e metodologias. Ou seja, do macro, o que fazíamos antes. Isso não quer dizer que estudos sobre gênero, raça e sexualidade sejam coisas negativas. Ao contrário, são contribuições importantes ao mundo intelectual. O perigo é todo livro trazer gênero, raça e sexualidade no título.

Folha - A academia precisa de uma reformulação?
Serbin
- A sociedade americana passou por várias reformulações. As Forças Armadas, por exemplo, passaram por uma reformulação que as deixou mais ágeis. Depois da derrota no Vietnã, as Forças Armadas dos EUA fizeram uma introspecção e criaram um novo modelo, totalmente diferente. Outras áreas não fizeram isso, como a academia e o jornalismo.

Folha - O sr. criticou a reportagem do "New York Times" que afirmava haver uma "preocupação nacional" no Brasil sobre suposto consumo de álcool pelo presidente.
Serbin
- O que Larry Rother escreveu sobre Lula é um sintoma da decadência geral do jornalismo americano. Atribuo isso a vários fatores. Por exemplo, a ênfase na celebridade política. O "NYT", na crise da Monica Lewinsky, tinha, por dia, 20 reportagens sobre sexo oral na Casa Branca, justamente no momento em que Osama bin Laden planejava derrubar os EUA. Todo mundo olhando para isso, em vez de discutir segurança nacional, meio ambiente, questões não-personalizadas. As Forças Armadas souberam se reformar. O jornalismo não. A academia não. Há hoje a opção preferencial pelos ricos. Na Teologia da Libertação, havia a opção preferencial pelos pobres. A academia dos EUA fez a opção pelos ricos.

Folha - O sr. pode exemplificar?
Serbin
- Harvard tem um patrimônio de US$ 20 bilhões, maior do que o PIB de diversos países. Tudo isso se faz sem reflexão. Para que serve essa riqueza acumulada? As universidades americanas estão cada vez mais empresariais. O professor é cada vez menos importante. Cumpre sua tarefa de dar aulas e vai para casa. Não é sindicalizado, não tem voz na administração da universidade. Na América Latina, o reitor se elege. Não acho que nos EUA se chegue a esse ponto, mas é preciso parar com a contratação de reitores cuja meta seja apenas angariar dinheiro. Há uma corrida entre as universidades para ver quem terá um patrimônio maior.

Em Yale, onde estudei, há embates constantes entre a universidade e trabalhadores sindicalizados. Não há consciência social. E os professores não questionam, querem fazer suas carreiras, ganhar títulos, publicar livros. Isso faz parte, mas não basta.

Folha - Como vê o governo Lula?
Serbin
- Em primeiro lugar, é claro que há uma decepção. O povão não sei ainda, não pude sondar. Pelas pesquisas, ainda existe confiança na figura do presidente. Pelo que ouço nas classes médias e intelectualizadas, há uma decepção muito grande. Mas temos de lembrar que é preciso dar tempo. Como historiador, sempre olho para trás. Daqui a dez anos, será mais fácil julgar. Mas certamente há distanciamento do movimento social. Acho que o governo Lula, conforme a conjuntura, poderia se aliar de novo ao movimento social. Se houver uma crise econômica forte, uma mudança no cenário internacional. Lula ainda pode depender da reserva que o PT criou no movimento social.

Folha - Mas é possível Lula retomar uma aliança com os movimentos sociais e manter a proximidade com setores conservadores?
Serbin
- É possível, mas depende da conjuntura. Acho que não vai ocorrer, mas há a potencialidade ainda. Muita gente no PT gostaria de ver esse caminho tomado. Nas circunstâncias políticas, Lula poderia mudar. Na história brasileira, todos os políticos procuraram acomodar as forças conservadoras. Mais à direita, o governo Lula não pode ir. Daqui em diante tem de trabalhar mais pela esquerda.

Folha - Mas isso é compatível?
Serbin
- Todo mundo concorda que o governo Lula vai bem na continuação da política econômica do PSDB, mas vai mal na questão social. São políticas compatíveis? A curto prazo, não. A longo prazo, sim. É óbvio que o governo Lula iria fazer o que tem feito. Não me surpreende. Sem isso, ele não teria sido eleito. É claro que tem de lutar para se manter no poder, não se pode esquecer disso.

Mas o PT tem de apelar para sua criatividade histórica. Sempre foi um partido que estimulava a participação popular e das bases. Isso não se vê hoje. O PT conseguiu administrar muitas prefeituras com lisura, transparência e criatividade. O governo federal é outro animal. É outra história. Surpreende-me que Lula não tenha criado frentes de trabalho. Não daquelas antigas no Nordeste para arar terra. Frentes de trabalho urbano, com tanta gente sem trabalho em São Paulo. Falta criatividade. O partido se burocratizou. Faz parte do sistema. Nunca mais será como antes. Tem dificuldade de viver sem ser oposição.

Folha - O sr. foi vítima da violência que se amplia no Brasil. Falta prioridade na área da segurança?
Serbin
- No dia 4 de julho de 2003, saí à noite no Rio, com minha mulher e minha filha de três anos. Estávamos na Ilha do Governador. Vimos uma pessoa dando tiros para o alto. Vamos expor nossa filha? Fizemos um trato de não sair à noite no Rio. O maior problema do governo Lula e de todos os governos brasileiros é a segurança pública. O governo não a trata como prioridade.

Folha - É uma das reformas estruturais que o sr. diz que faltam?
Serbin
- Estamos falando não só de política econômica conjuntural. O Brasil precisa de reformas estruturais mesmo. Não só na Previdência e a tributária. Na área educacional, a universidade é um subsídio para a classe média. Quem faz um bom cursinho entra nas universidades que não são pagas. Acho que classe média deveria pagar. É um dos dogmas que têm de ser quebrados. É uma opção preferencial pelos ricos.

Nas academias americanas públicas mais populares, as pessoas pagam ao menos algo simbólico. Aqui a classe média alta e os ricos têm de pagar. As universidades públicas, embora sejam lugares de privilégios e bons professores, precisam de investimento, claro. O Brasil não vai para a frente sem educação. Se vermos nos últimos 50 anos, os índices têm melhorado, mas têm de melhorar mais.
 

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