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10/12/2000 - 10h01

Fidelidade entre crianças é mais importante que contar a verdade

DÉBORA YURI
da Revista da Folha

Para selar a forte amizade, quatro amigos de escola fazem um pacto: nunca contarão a outras pessoas os erros cometidos por qualquer um deles. Um dia, um membro do grupo quebra a janela da sala de aula ou furta um carrinho de outro menino. Questionada por pais e professores se sabe quem foi o autor do delito, a criança se vê numa encruzilhada. Mantém-se fiel ao acordo feito ou respeita as regras morais de "nunca mentir" e "jamais encobrir coisas erradas" que lhe foram ensinadas?

"No afá de ensinar valores corretos, pais e professores têm o hábito ruim de exigir que as crianças delatem", observa Nelson Pedro da Silva, docente da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp (Universidade de São Paulo). "Eles não sabem que estão indo contra um dos valores mais importantes na infância, a fidelidade aos amigos."

Autor de uma tese de doutorado sobre a importância da fidelidade como valor moral, que será defendida em março, Nelson entrevistou 190 estudantes de escolas públicas, de 6 a 12 anos, de ambos os sexos, para analisar a reação infanto-juvenil diante de casos de mentira, roubo e generosidade (veja quadro).

Entre os entrevistados, 30% disseram que se manteriam fiéis aos amigos mesmo que estivessem envolvidos em situação de roubo; 25%, que não abririam a boca para desmascarar uma mentira e 15%, que desistiriam de um gesto de generosidade com uma pessoa estranha para respeitar a amizade.

Para Nelson, esses números refletem a crise moral e ética da sociedade. "Essa bagunça acaba elevando os valores afetivos a primeiro plano", analisa. Os pais e os educadores, em sua opinião, estão "completamente perdidos". Não dá para incentivar atitudes erradas, mas a delação também é repudiada. "Eles não sabem que valores passar aos mais jovens, porque o mundo inteiro perdeu as referências."

A pesquisa revelou também que o fato de a fidelidade ser quase sagrada no universo infantil não significa que não exista ali noções claras de ética. Um exemplo: crianças de 12 anos ponderaram melhor do que as de 6 sobre as questões de mentira e roubo. Mesmo quem disse manter-se fiel ao amigo até o fim mostrou ter consciência de que mentira e roubo são, inquestionavelmente, práticas condenáveis.

"Mentir para a professora é feio, mas eu nunca dedei um amigo na vida", resume Guilherme Kitadai, 9. Débora Elias Calabro, 9, sua colega de escola, diz que delataria em alguns casos. "Mas só se minha amiga estivesse muito, muito errada. Se roubasse alguma coisa muito cara." E se ela pedisse, por favor, para não ser denunciada? "Aí eu não dedaria, não. Eu teria medo. Imagine se ela fosse expulsa do colégio ou deixasse de ser minha amiga?"

As crianças costumam demonstrar o quanto levam a fidelidade a sério. Gabriel Queiroz Geraissati, 9, e Guilherme Manera, 9, contam que resolveram testar a lealdade de um companheiro em comum. "Eu liguei para ele e falei "O Guilherme é meio chato, né?'. Ele concordou na hora", conta Gabriel.
No mesmo dia, Guilherme teve procedimento idêntico. E o coleguinha respondeu da mesma forma. Resultado: os dois perceberam que o tal menino estava mais é para amigo-da-onça.


A lei dos iguais
"Se a criança está se desenvolvendo bem, ela se sente inserida em um grupo. E, sentindo-se bem nesse grupo, a tendência é que seja fiel a ele", explica Vera Zimmermann, psiquiatra infantil da Unifesp. Para ela, numa família saudável também é normal que os irmãos se protejam. "A criança que dedura sem critérios mostra que tem algo errado. Seu papel não é esse", diz.

Vera aconselha os pais a não cobrar que um filho denuncie o outro Äo melhor caminho é conseguir a confissão de quem fez a coisa errada. "Para a criança, ser mal visto pelos iguais é pior que ser mal visto pelos pais."

É preciso equilíbrio, diz Ana Maria Massa, psicóloga infantil, também da Unifesp. "Ser fiel às pessoas queridas é tão essencial na formação quanto possuir qualidades morais. Por isso, é melhor não criar conflito entre as duas condutas. Afinal, todo mundo, mesmo adulto, quer um cúmplice, alguém absolutamente confiável", fala .

Desde cedo, diz Ana Maria, os pais precisam transmitir aos filhos valores como moralidade, justiça, solidariedade e respeito aos outros Ämas ensinar não é tudo. "Também devem aceitar que eles errem, além de manter em casa um clima de diálogo", completa.

Não é só entre crianças que o compromisso de fidelidade está acima de tudo, esse é um valor fundamental em muitos grupos sociais. De detentos e presos políticos torturados a funcionários de uma empresa e torcedores de futebol, passando até por casais de namorados, não ser leal pode ser uma falha gravíssima de caráter.

"A lealdade entre nós é maior do que todos os outros princípios", define Paulo Serdan, 33, presidente da Mancha Alviverde, a maior torcida organizada do Palmeiras. Já seus arquirivais, os corintianos, nem precisam se alongar no discurso: o nome que define sua principal facção é Gaviões da Fiel e eles gostam de se auto-entitular "a Fiel (com letra maiúscula mesmo) torcida corintiana". "Mais do que honestidade ou moralidade, a fidelidade virou o valor mais importante no Brasil de hoje", critica Nelson Pedro da Silva.

Nesse cenário, ser educador (pai ou professor) é padecer no fogo-cruzado. Os especialistas condenam, por exemplo, chavões do tipo "Você tem que falar quem roubou, senão vai estar sendo cúmplice", na tentativa de forçar o filho a abrir a boca. "Isso é uma agressão à criança, porque ela tem um vínculo moral com o amigo", explica Isabel Cristina Gomes, professora-doutora do Instituto de Psicologia da USP.

Isabel lembra que o silêncio não significa que a criança defenda o ato de roubar ou que vá virar ladrão. Mas todo caso é um caso, claro. É perigoso alguém que cresce sem conseguir distinguir o que é acobertar um simples tropeço de um crime sério. "Ensinar que a verdade é sempre importante é um bom começo", recomenda a psicóloga da USP.

Para Nelson Pedro da Silva, há dois tipos de fidelidade: a boa, que chama de "virtuosa", e a má ("condenável"). "Mais valioso que ser fiel é saber ao que ser fiel", diz o psicólogo da Unesp. Ele dá uma dica: "O ideal é fazer com que o filho reflita sobre o tema fidelidade, para que ele possa decidir, por si mesmo e de maneira consciente, quando deve ser fiel ou não".
 

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