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23/12/2001 - 15h11

Um livro fez minha cabeça

da Revista da Folha

O concorrente desta seção tinha que eleger "o livro que mudou sua vida" -e explicar por quê. Apareceu desde leitor contando que um livro caiu em sua cabeça, na livraria, e ele acabou se casando com a balconista, até mais de uma dezena que, em detrimento de Fernando Pessoa, Marcel Proust e outros clássicos, preferiu eleger suas próprias obras, nunca publicadas. O vencedor, o biólogo Paulo José Moraes Marinho, 51, conta que se apaixonou por "Primeiras Estórias", de Guimarães Rosa, quando sua filha precisou ler o livro para prestar o vestibular.

"Quem leu fui eu. Me identifiquei imediatamente", conta Marinho, que para participar do concurso incorporou o estilo de Rosa. Marinho leu a obra que marcou sua vida 35 anos depois de ter trabalhado como empacotador em uma livraria.

Pós-graduado em biologia celular, até agora não misturou as duas paixões. "Escrever sobre biologia? Nunca pensei."

1º O dia em que desmorri

Paulo José Moraes Marinho, 51, biólogo, Santo Amaro

Com sua licença, meu senhor, quero sucintamente fazer, mesmo porque, por recato, sou de pouco falar, um relato de acontecimento comigo mesmo passado. Não se trata de invencionice, como assim poderia, mas de fato de verdadeira comprovação que gente de boa fé pode atestar.
Desde menino, assim, pequenino, tirava, de próprias idéias, histórias para contar. Já mais moço e ocupado, nas horas mornas dos dias ou no recolhimento de noites vazias, me dedicava à escrevinhação.
Intenção nenhuma eu tinha, de fazer carreira ou ganhar valor que fosse, com atitude essa minha. Fazia por puro gostar. Pelo prazer de sonhar.
Mas destino já traçado, amargurou-me. Rim parou. Coração falhou. Quase desvivi. Com um rim implantado e coração costurado, sorumbático, não quis mais fantasiar. Foi então que um mero acaso, se é que assim pode ser, colocou-me em mãos, um livro: "Primeiras Estórias", assim chamado, por João Guimarães Rosa assinado.
Personagens, lugares, linguagem, surgiram num ritmo que me reavivou lembranças adormecidas, não mortas, de um mundo que bem conheço, no real e no quimérico. Entusiasmado, peguei de pena e papel, pois da modernidade ainda careço, e desdormi os habitantes do meu imaginário. Inventador de histórias, desmorri. O sonho continua.
Vivo. Feliz. Contei.

"Primeiras Estórias", de João Guimarães Rosa (Nova Fronteira, 240 págs. R$ 23). Contos curtos do autor de "Grande Sertão: Veredas", um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. "Primeiras Estórias" é considerado também a iniciação mais fácil ao seu universo.

2º A cegueira me trouxe à luz

Izabel Cristina Rios, 40, médica, Perdizes

Era um homem de pouco falar, então achei compreensível quando seu gesto final foi colocar um livro em minhas mãos, para que as palavras que ele não tinha para me dar não me fizessem tanta falta depois.
Mas como a emoção da gente não costuma corresponder à razão, cada vez que pegava num livro de literatura, me lembrava desse nosso último momento, e não conseguia ir além do prefácio. Sua vontade derradeira virou do avesso e passou a me assombrar feito uma maldição à leitura.
Muitos anos se passaram até que a cena se repetiu no gesto espontâneo do menino que, em poucas palavras, colocou de novo um livro em minhas mãos: "Parabéns, mãe, tomara que você goste".
Naquela noite, sem nada muito bom para fazer, comecei a ler o que acabara de ganhar e, fascinada com a escrita vigorosa, a narrativa intensa que desliza da superfície do olhar ao fundo da alma e atiça o desejo de um pouco mais, mais um pouco, não consegui parar até chegar à última palavra, à última gota de intensidade poética.
Estava de volta à luz. Desperta para a arte que sempre foi a melhor tradução dos meus sentimentos irreconhecíveis em mim mesma. O livro? "Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago.

"Ensaio Sobre a Cegueira", de José Saramago, (Cia. das Letras, 312 págs., R$ 29). Nobel de literatura em 1998, Saramago é um dos principais escritores contemporâneos, sucesso de crítica e público. Nesse livro, retrata a vida de pessoas que ficam cegas e vão sendo isoladas da sociedade.

3º Li, reli, e nunca mais fui o mesmo

Marcelo Gattaz, 34, supervisor de vendas, Santa Cecília

Era 1982, em São Pedro, interior de São Paulo. Eu era um jovem de 16, 17 anos. Levava aquela vidinha... Trabalhava como marceneiro, fazendo móveis de péssima qualidade. Namorava meu primeiro amor, jogava futebol (o futebol estava em 2º lugar, desde que o sexo passou para a primeiríssima posição...), tinha um vira-lata, andava de bicicleta e estudava à noite.
Lia muito gibis, que me fizeram um leitor assíduo de todas as letras que minha retina conseguia captar em meus momentos conscientes. Lia tudo. Embalagens de bebidas, bulas (minhas preferidas!), produtos de limpeza, adesivos em carros...
Foi nessa época que ganhei um livro. O nome do autor era para mim desconhecido, Marcelo Rubens Paiva, mas o título do livro me interessou, "Feliz Ano Velho". Li, reli e li novamente... Nunca mais fui o mesmo. Nunca mais meus pensamentos seguiram sua ordem natural.
Marcelo Rubens Paiva me contou a história de sua vida. Me disse sobre seu mergulho com pose de Tio Patinhas (que eu imaginei perfeitamente ) e me contou seu medo após o acidente. Me mostrou que eu não sou um super-herói como eu achava que até fosse (ainda esperava encontrar a minha capa). Me ensinou que "de que vale a vida eterna, se um orgasmo dura poucos segundos?", frase que repito toda hora. Me mostrou que as coisas não serão exatamente como desejamos.
Fiz minhas malas, fui para Sampa, terminei meu namoro, mudei, trabalhei, trabalhei, trabalhei... Um dia, encontrei o Marcelo num show e perguntei se a frase do orgasmo era dele. Ele respondeu que sim. Desculpe, Marcelo, agora ela é nossa.

"Feliz Ano Velho", de Marcelo Rubens Paiva (Mandarim/Siciliano, 232 págs., R$ 26,50). Livro de memórias da juventude do colunista da Folha, que ficou paraplégico após um mergulho infeliz. Ganhou versões para o cinema e teatro.
 

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