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14/05/2001 - 17h18

A comida se tornou uma commodity

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MARCELO LEITE
Editor de Ciência da Folha

Seria um exagero dizer que as condições para as epidemias por ora continentais de encefalopatia espongiforme bovina (BSE, a doença da vaca louca) e de febre aftosa foram criadas pela inclusão da agricultura no Acordo Geral de Tarifas e Comércio (mais conhecido por Gatt), em 1994.

Mas é certo que sua explosão guarda ao menos alguma relação com o movimento geral de liberalização do comércio mundial que levaria ao Gatt, destinado a transformar a comida -assim como tudo o mais sobre a Terra- numa commodity, mesmo que para isso fosse preciso dar o passo temerário de relaxar padrões sanitários.

Os defensores do comércio desregulamentado dirão que não houve relaxamento algum. Todo um novo sistema global de parâmetros de saúde foi erigido, com mais de 20 comitês de especialistas reunindo-se no âmbito de organismos como SPS (Padrões Sanitários e Fitossanitários, na sigla em inglês), TBT (Barreiras Técnicas ao Comércio) e Codex Alimentarius -proliferação que mais parece burocratizar do que prevenir doenças, providência sempre suspeita de representar protecionismo velado.

Além disso, um quarto dos que têm assento nesses organismos vêm de indústrias interessadas na mundialização do alimento, como ressalta o pesquisador Tim Lang num trabalho de 1996. Dos participantes de origem não-governamental, nada menos do que 96% representam a indústria.

Difícil acreditar que estejam ali para defender, em primeiro lugar, a saúde pública (é bom ter em mente o exemplo da indústria do tabaco).

O problema maior da BSE e da aftosa está na própria mobilidade da carne e na sua mundialização como ícone de consumo urbano, fenômeno já batizado de "burguerização". Segundo o Worldwatch Institute (www.worldwatch.org), a produção mundial de carnes passou de 44 milhões de toneladas em 1950 para 217 milhões em 1999, mais que duplicando a produção mundial per capita.

À medida que se urbaniza, a população -mesmo em países pobres- troca a dieta tradicional de grãos e vegetais ricos em fibras por outra, recheada de gorduras e açúcares, tendência conhecida como "transição nutricional" (correlata da chamada transição demográfica, caracterizada pela queda da taxa de fertilidade e pelo aumento da expectativa de vida). Cinco lanchonetes McDonald's são abertas a cada dia, quatro delas fora dos Estados Unidos. É o mercado global capitalizando a atração fatal (provavelmente inscrita nos genes) exercida sobre o homem por comidas doces e/ou gordurosas, as mais energéticas e, assim, capazes de melhorar as chances de sobrevivência e reprodução dos primeiros hominídeos.

Para satisfazer tanto apetite por carne, o agronegócio mundializado teve de entregar-se a práticas insustentáveis. Por serem biorreatores muito ineficientes na transformação de proteína vegetal em animal (8 kg de grãos para 1 kg de carne), bois e vacas viram misturada em sua ração proteína animal que de outro modo seria descartada -carcaças, de gado bovino mesmo ou de outros animais, como ovelhas. Dessa transformação de seres herbívoros em carnívoros e, pior, canibais teriam resultado as condições para as moléculas infecciosas da BSE (príons) saltarem barreiras entre espécies, alcançando até a humana.

Esse movimento coordenado de ascensão de parcelas crescentes da população mundial na cadeia alimentar contradiz uma lei ecológica básica, a de que carnívoros sempre ocorrem em número menor do que herbívoros e plantas. Isso exerce uma pressão irresistível sobre a produção de grãos, por exemplo. Mais de um terço dela, hoje, é reservada à fabricação de ração para bois, porcos e galinhas.

É essa demanda por proteína, também, que explica a explosão do cultivo da soja, que saltou de 17 milhões de toneladas em 1950 para 154 milhões em 1999 (aumento de nove vezes, contra a mera triplicação da produção de trigo, milho e arroz). Só um décimo da soja colhida no mundo se destina à alimentação humana.

Não há volta para a urbanização, por certo, nem parece razoável sonhar com o renascimento da produção local e artesanal da própria comida. Mas também não é difícil de perceber que BSE e febre aftosa podem ser apenas os sintomas de uma moléstia global, que começa na idéia fixa da infinitude dos recursos naturais e termina no delírio de que, com a biotecnologia, em 50 anos, será possível incluir 9 bilhões de pessoas nos padrões de consumo de energia e alimentos hoje vigentes em países ricos.

Há que considerar a chance de que o banquete acabe em pesadelo. Afinal, foram os próprios economistas liberais que consagraram o princípio de que não existe almoço de graça.

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